acidrock 16/12/2020
O que você faz quando ninguém te vê fazendo?
Certa vez, quando trabalhava em redação, meu chefe me recomendou um texto, Frank Sinatra está gripado, um perfil publicado décadas antes. Gay Talese, que assina o artigo, não conseguia conversar com o cantor de olhos azuis. Decidiu-se por mostrar quem ele era pela a visão dos que o conheciam. A matéria tornou-se um clássico. "Estreei" com o autor nesse "O voyeur". A sinopse: homem absolutamente comum adquire motel e abre buracos no teto de alguns quartos com o objetivo de observar os hóspedes sem ser visto por nenhum deles. Ao mesmo tempo em que traçava um perfil da sexualidade dos norte-americanos nas décadas de 1960 e 1970, ele satisfazia sua tara. Tudo fica mais sério quando acaba presenciando um crime.
As histórias de voyeur e de Gay Talese se cruzaram quando o primeiro, chamado Gerald Foos, enviou uma carta ao jornalista contando por alto suas proezas. Por causa do trabalho que se propunha a fazer, reportagens robustas envernizadas com o charme da ficção, o escritor estabeleceu uma regra: só contaria a seus leitores sobre o dono do Manor House Motel, em Aurora, Colorado, quando este o autorizasse a usar seu nome verdadeiro. Amedrontado pela repercussão e possíveis implicações criminais, Foos se recusou. Entretanto, começou a enviar para o Talese durante os anos seguintes seus minuciosos relatórios do que se passava na intimidade das pessoas hospedadas no local.
Mais do que um bisbilhoteiro, ele se considerava um estudioso da sexualidade. Com o diferencial de, ao contrário de pioneiros, tais como Kinsey e Masters & Johnson, baseados em observações consensuais, poder assistir de camarote o que realmente acontecia quando uma, duas ou mais pessoas estavam no mesmo ambiente com o propósito de fazer (todos os tipos de) atividades. Indo além, Foos acreditava tecer um panorama sobre a natureza humana, por vezes fazendo até testes com os hóspedes, como persuadi-los a encontrar uma maleta onde supostamente estaria escondido dinheiro – do duto de ventilação, ele via quem a devolvia, quem não.
Em uma de suas cartas periódicas, o empresário diz ter presenciado um assassinato. Tal confissão é apenas um dos questionamentos que o livro traz à tona. Seria verdade? Gay Talese, tendo ciência disso, deveria ter tomado alguma atitude? Ou isso estaria protegido pelo segredo da fonte, algo tão sagrado para os americanos como a Primeira Emenda, e semelhante, por exemplo, à confissão na Igreja Católica ou ao sigilo advogado-cliente? Não obstante, o jornalista, ao início das comunicações com Foos, voou até o Colorado e atestou a veracidade do que ele dizia ao comprovar in loco a existência das “plataformas de observação” no Manor House Motel.
A discussão se aprofunda mais ainda em "Voyeur", documentário da Netflix dirigida por Myles Kane e Josh Koury. A produção mostra a interação entre personagem e repórter às vésperas da publicação de artigo na revista The New Yorker e da subsequente chegada da obra completa às livrarias. Podemos ver um pouco do processo criativo de Talese, um acumulador de informações, notas e escritos, bem como uma espécie de reality show sobre a vida de Gerald Foos na terceira idade. É interessante conferir, principalmente para quem leu O voyeur (finalizado na edição brasileira, da Companhia das Letras, por uma ótima entrevista do jornalista a Katie Roiphe, da Paris Review), já que o filme mostra as repercussões da divulgação desta história, suas controvérsias e até, pasmem, um e outro barraco.
Em resumo, tanto o livro quanto o documentário, mesmo muito bem contados, parecem suscitar mais perguntas do que respostas sobre a vida deste homem do Colorado, que comprou um motel para observar seus hóspedes. Não é disso que se trata o jornalismo?
site: lozengelis.wordpress.com