Luiza 05/02/2020
Zózimo e o Rio apaixonam... comme il faut !
Do começo ao fim, a biografia me fisgou e, ao longo da leitura, me diverti, me surpreendi, ri e chorei.
Ah, sim, como CHOREI quando a vida do jornalista termina!
A narrativa é fabulosa, é possível ver as "cenas" desfiando quadro a quadro... como um filme saboroso do Rio! O escritor nos pega pelo coração e nos conduz a uma viagem nostálgica, começando pela década de 40 e seguindo até os anos 90 da Zona Sul carioca.
É um passeio recheado de carioquices, que nos aproxima intimamente de Zózimo e seu universo: o jornalismo, o saudoso Jornal do Brasil, a Zona Sul do Rio de Janeiro, o carnaval, as festas e a política, os restaurantes, boates e bares, os amigos e as mulheres, a ditadura e seu final... Um passeio bonito, como um fim de tarde de verão na Lagoa, onde Zózimo pedalava.
Aqueles que viveram essas décadas com certeza se emocionarão, como eu me emocionei em todos os sentidos. Senti saudade do Rio! Saudade do que vivi, e também das coisas que não vivi - mas das quais senti os reflexos nos anos da minha juventude.
Agradeço ao Joaquim pelos 30 anos pesquisando e entrevistando personalidades para compor essa obra linda... Não imaginava que ela me abraçaria dessa forma tão terna e única. Termino o livro apaixonada por Zózimo e ainda mais pelo meu Rio e suas personagens, comme il faut... ♡
TRECHO SELECIONADO:
O português do botequim da praça Mauá do Rio já tinha visto de tudo naquele cenário de malandros, putas e marinheiros, mas lá estavam à sua frente, em 7 de setembro de 1985, cinco homens vestidos de militares americanos. Só usavam o inglês para pedir cerveja. No resto do tempo conversavam em português. Gargalhavam. Alguns, ligeiramente barrigudos, não tinham o physique du rôle necessário para integrar uma corporação militar — mas quem é que perde tempo com essas estranhezas no cais do porto? O portuga foi colocando na mesa as cervejas, mais de uma dúzia delas.
O gaiato pelotão de oficiais americanos era formado pelo psicanalista Hélio Pellegrino e os jornalistas Alfredo Sirkis, Fausto Wolff, Alan Riding e Zózimo. Estavam vindo de um quarteirão adiante, um galpão abandonado cedido para as filmagens de Tanga — Deu no New York Times?, a primeira e última aventura do cartunista Henrique de Souza Filho, o Henfil, como diretor de cinema. O grupo participava do filme no papel de um comando militar americano. Tinha ido parar no boteco porque o diretor, a pretexto de botar ordem no set, proibira a circulação de bebida durante as filmagens. “Eu não sou lavanderia para trabalhar a seco!”, teria gritado Fausto Wolff no estúdio, liderando a revolta. Rebeldes com uma causa, todos marcharam rumo ao botequim democrático.
A cena podia estar no filme — uma alegoria amalucada sobre as ditaduras do Terceiro Mundo, passada na miserável e fictícia ilha caribenha de Tanga. O protagonista, o ditador Herr Walkyria, como ato primeiro acabara com todos os jornais e deixara circular em Tanga apenas o New York Times — na verdade, um único exemplar, o do palácio. Só ele lia. Depois da leitura, feita numa privada-bunker, o ditador queimava as páginas. Do lado de fora, os sete grupos guerrilheiros que lutavam pelo poder tentavam decodificar as notícias segundo o volume e a cor da fumaça que saía pela chaminé do banheiro.
A ditadura brasileira estava chegando ao fim em 1985 e o filme, realizado alguns meses após a morte de Tancredo Neves, ocorrida em 21 de abril de 1985, cravava uma multidão de referências ao que se passara nos anos de chumbo. O New York Times havia sido a tribuna internacional na qual grupos brasileiros de oposição publicavam notícias sobre tortura. A base do filme era real. Henfil, na ditadura, passava para o jornalão americano os nomes de presos políticos, e só assim os advogados, de posse do exemplar, podiam entrar com um processo de busca de paradeiro, evitando que opositores do regime sumissem, mortos, nos porões. Entre verdades e mentiras, a comédia maluca seguia. Os militares de Tanga vestiam-se de cor-de-rosa. Herr Walkyria dormia abraçado a um urso de pelúcia. Finalmente dava para rir dos generais, e Henfil, censurado por eles, agora aproveitava.
Zózimo se relacionava bem com Henfil, seu colega de Jornal do Brasil. As tiras da Graúna, dos fradinhos e do bode Francisco Orelana por muitos anos saíram no Caderno B, em alguns momentos na página 4, no verso da coluna, e Henfil gostava de brincar dizendo que os dois (um mostrando a burguesia e o outro, os seus adversários) espelhavam bem o pluralismo do JB. O humorista era popular por causa de seus personagens, tirados das histórias do povo brasileiro, mas não era populista. Zózimo, colunista social, também não combinava com o estereótipo clássico do elitista. Os dois se identificavam nessas estranhezas.
Topar o projeto valia pela amizade com Henfil e pela nostalgia daquela noite, tempos atrás, como ator do Grupo de Orla. A turma tão heterogênea, inteligente e beberrona também garantia gandaia. O único convidado que relutou foi Alan Riding, correspondente do New York Times, preocupado com o que a matriz de seu jornal pudesse achar. Como soaria aos americanos um jornalista sério no meio daquela pândega? Era das boas piadas de Henfil, embora decifrada por poucos. Para Zózimo, a experiência com Tanga não rendeu um tostão e lhe custou o feriado de 7 de setembro. Mas foi divertido.
A cena em que aparece, de três minutos, tomou-lhe um dia no set. Nela, Fausto Wolff, o general do Pentágono, descreve para seu colegiado de milicos o perfil da ilha de Tanga, representada na reunião pelo sobrinho do ditador, um certo Kubanin (Henfil, em aparição no estilo Hitchcock). Tanga quer apoio para enfrentar guerrilheiros e os generais serão enviados com suas tropas. “É uma ilha tão grande quanto o Brooklyn, sem médicos, sem Congresso”, vai narrando Wolff num inglês de acento londrino, escandindo sílaba por sílaba. Sentados à mesa de reunião, Zózimo e demais militares ouvem. De vez em quando são varridos em close, como se o diretor quisesse escancarar o incrível casting. “A pesca alimenta o povo com peixes e o Estado com lagosta e camarões. É uma ilha com 99% de analfabetismo, com a maior mina de tangaína do mundo.” Nesse momento, coreografados, Zózimo e todos os militares da mesa acendem cigarros com movimento semelhante de isqueiros.
“Eles precisam de armas americanas para interromper a ofensiva comunista internacional de sete grupos guerrilheiros”, continua o personagem de Fausto Wolff. “O Partido Comunista Tanganês, o Ação Paranoica Radical, o Pentelho Luminoso” — em nova marcação cênica, os militares caem na gargalhada. “O Paralelo Zero”, continua Wolff relacionando os grupos, “a Vanguarda da Vodca Sectária, a Liga da Mulher Ideal e a Ação Insurrecional Democrática Sexual, AIDS.” Dito isso, a câmera mostra a mesa vazia. Apenas um vento sopra nos papéis que estão sobre ela, informando que, diante das quatro letras — o terror mundial de 1985 —, Zózimo e os colegas militares tinham dado no pé.
Acaba aí a participação de Zózimo em Tanga, um filme que passou como um raio nos cinemas e não entusiasmou o YouTube, onde tem registrados, na íntegra de seus noventa e seis minutos, cerca de 3 mil cliques em maio de 2016. A comédia política ficou confusa em sua profusão de metáforas, querendo passar para a Tanga fictícia o que tinha acontecido no Brasil. Tem ótima música de Wagner Tiso, o ator Rubens Corrêa como Herr Walkyria e outras atrações do surpreendente elenco, como o cartunista Jaguar num papel de bêbado, sempre olhando para fora de uma janela do castelo e perguntando: “E se os marines desembarcam?”
Hemofílico, Henfil morreu de aids em janeiro de 1988, logo após a estreia do filme, e virou notícia na página de obituários do New York Times. Dá para rir em alguns momentos do filme, mas seria melhor se ele tivesse colocado na tela algumas cenas dos bastidores, como a do fim da jornada de Fausto Wolff, Hélio Pellegrino, Alfredo Sirkis, Alan Riding e Zózimo. Eles voltam do bar do português na praça Mauá ligeiramente bêbados para continuar a filmagem. Henfil vira-se para a turma e diz: “Como é que eu posso filmar com esses irresponsáveis?”, e, pano rápido, todos caem na gargalhada.