Krishnamurti 22/11/2016
Homens e sucatas
Homens e sucatas
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
“O último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultrapassam.” Este pensamento de Blaise Pascal (1623-1662), vem-nos à mente após a leitura de “Homens e sucatas” da escritora Betzaida Mata (Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2015, 160p), livro onde estão reunidos dez contos.
O primeiro deles, “Da densidade humana”, tendo em vista o conjunto da obra, se afigura uma espécie de prólogo aos outros nove. É um texto curto que reproduz um diálogo (quase um monólogo) onde a ligeireza e espontaneidade de uma conversa áspera, mas inteligente, impressiona pelo pormenor da conclusão, que não deixa de ser, em chave humorística, uma definição de existencialidade. Os contos de Betzaida estão a pulsar, a germinar e a fermentar nos misteriosos meandros das entrelinhas. Ali se completam, se transformam, se diversificam em mil estilhaços da realidade para finalmente, sugestionar reflexões com firmeza de argumento. As urdiduras das ficções plasmadas no imaginário não sonegam, porém, um núcleo ficcional que, via de regra, se encontra escamoteado no início – ver especialmente o conto “Ervas e espíritos ou de como o amor pode ser ruim” – para no final, criar o efeito de mistério, solidão, esperança, ou que outro efeito pretenda sugerir, tendo sempre em mira a emoção fundamental que afeta as personagens. E, a propósito, acrescente-se que os desfechos são rápidos, impactantes, apanhando o leitor desprevenido ou deixando-lhe uma emoção através da qual repense a história que acabou de ler.
Quanto à temática, por vezes a autora propõe mistérios de uma situação invulgar e, ao mesmo tempo expõe o mistério da personalidade humana (Festa do Erê). Ou abre alas para o fantástico descolando a narrativa da realidade imediata. A super-realidade que finca raízes no real, tal como o conhecemos pelos nossos grosseiros sentidos (contos A trupe e O multiverso) ou ainda, reveste suas ficções de uma aura de dramaticidade e terror ao abordar o clima de radicalismo e intolerância que tomou conta do Brasil des-go-ver-na-do de nossos dias. (A lua nasceu em junho).
O universo é tema recorrente na ficção dessa autora. A dimensão cósmica aparece em vários textos como o incomensurável cenário onde nos movimentamos e para o qual não nos voltamos a refletir, acostumados que estamos a olhar para o chão em que pisamos. Presos aos nossos universos particulares, sempre varridos por aflições sem conta e miopia:
“O mundo das possibilidades infinitas é sedutor. No entanto, ainda não estamos preparados para ele. Nem eu, nem você e nem Isabel somos capazes de suportar uma totalidade aberta, estilhaçada e sem começo nem fim!” (Trecho do conto O multiverso p. 96).
O homem como um universo. Brilhante o paralelo que a autora faz com a dimensão das coisas muito pequenas, como aquelas que compõem nossos corpos (a molécula de DNA, por exemplo), com o gigantesco de planetas e galáxias. Como somos ao mesmo tempo pequenos e muito grandes...
“O ser humano pode ir ao espaço, conhecer outras galáxias e contar histórias maravilhosas de outros mundos. Mas como alcançar o universo microscópico que se desenrola diante da gente sem que possamos enxergar? Aquele que junta partículas invisíveis e forma um tecido, um embrião, um corpo!” (Trecho de As palavras e as coisas pequenas. P. 107).
Betzaida Mata se questiona e nos faz refletir se é mesmo possível conhecer a totalidade das coisas usando apenas a razão? – E talvez essa seja a sua mais profunda mensagem. Consegue nos induzir à percepção de que o mundo possui dimensões tão pequenas, que as coisas se dividem em tantas partes que a vista, a nossa razão não consegue compreender e apreender, pois elas estão para além de onde pensamos ser o limite. Compreender isto é aquele último “esforço da razão” de que falou Blaise Pascal.
Novembro/2016