Euflauzino 20/06/2017Os valores estabelecidos pela sociedade postos em xeque
Ultimamente tenho me encantado com a literatura que vem do frio. Os países nórdicos têm nos dado tantos autores de qualidade nos romances policial e de horror que ao me deparar com “Clássico da Literatura Escandinava”, não tive dúvida em me aventurar. O ano da lebre (Bertrand Brasil, 208 páginas) seria uma leitura diferente, agora um clássico com letras garrafais.
De qualquer forma, procurei me informar um pouco mais sobre a literatura de Arto Paasilinna, um completo desconhecido para mim, assim como todos os outros escritores finlandeses. Não cheguei a lugar algum. Não há nada além das menções e elogios, seus prêmios para este livro e adaptações para o cinema. Continuei no escuro.
Algumas coincidências me deixaram atordoado: a) O ano em que o livro foi escrito é 1975 (ano da lebre ou coelho no horóscopo chinês); b) A personagem central do livro, Kaarlo Vatanen, nasceu em 1942 e era jornalista assim como o autor.
Teria ele escrito sobre si mesmo ou sobre a vontade de viver tudo aquilo? Haveria alguma ligação subliminar que eu deveria notar? Eram muitas perguntas sem resposta, assim como a literatura finlandesa. Tudo isso se mostrou pouco interessante diante da amplitude dos ensinamentos deste livro simples e objetivo, um libelo pela busca da liberdade e da felicidade.
Em 1975, o autor já refletia sobre a solidão e a tristeza impostas pelos grandes centros urbanos, a velocidade desenfreada da vida. Há certo viés político-social neste livro, mas não quis me ater a ele em minha leitura, por isso não entrarei em detalhes aqui. O que importa é a experiência da personagem e o impacto que ela me causou.
Poderíamos dividir este livro pelas mulheres que atravessaram a vida de Vatanen. No início temos a “esposa”. Representa a sua vida enfadonha, tudo o que ele quer de alguma forma apagar, mas falta-lhe coragem. Ele precisa romper com este passado, a questão aqui é a “desobediência”. É o momento da vida em que olhamos para trás e nos questionamos se valeu a pena o que fizemos para chegar aonde chegamos.
"Eles eram um jornalista e um fotógrafo que estavam na rua para realizar um serviço: dois seres humanos insatisfeitos, céticos, aproximando-se da meia-idade. As esperanças das suas respectivas juventudes não haviam se realizado, longe disso. Eram maridos, que traíam e eram traídos; ambos a caminho de úlceras estomacais, com muitas preocupações preenchendo os seus dias."
Durante a volta de um trabalho em que ele e o fotógrafo haviam terminado, atropelam acidentalmente uma lebre. Ela é o gatilho, o motor que enseja a ruptura, a transformação de Vatanen. Sua fidelidade ao animal, a entrega, o amor, tudo ali explícito e recíproco. É comovente a parceria homem-animal em contraste com a relação com seus pares.
"O jornalista pegou a lebre aterrorizada no colo. Quebrou um pedaço de graveto e fez uma tala para a pata quebrada, usando trapos rasgados do próprio lenço. O animal aninhou a cabeça entre as pequenas patas dianteiras, as orelhas tremendo com as batidas do seu coração."
A partir daí ele resolve dar um ponto final à vida que leva, larga a esposa, vende suas posses e parte para as selvas finlandesas em uma jornada de descobertas com sua única companhia – a lebre. Seu apego e relacionamento com o animal selvagem é de um humor frio, seco e irônico (seria esta a personalidade daqueles que nascem em países frios?). Ele não busca um sentido para viver, busca apenas viver, respirar. Uma viagem ao encontro de si mesmo.
Não há como se encarcerar um espírito que nasceu para ser livre, indomável. Ele se envolve em uma sucessão de aventuras que só fazem corroborar sua personalidade anárquica, subversiva e revolucionária.
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