Zilda Peixoto 28/11/2016
A Fila - contos sobre uma realidade nua, crua e desconcertante
A Fila, livro de contos escrito por Ana Esterque é composto por dez narrativas duras, por vezes cruéis; um olhar atento e observador sob uma percepção do vazio da alma de seus personagens.
A narrativa ligeira e precisa, característica do conto facilita o entendimento do leitor e faz com que consigamos nos conectar à mensagem imediatamente. Ana descreve sobre dores profundas, sobre temas extremamente delicados como estupro, incesto, desvalorização da mulher, entre outros dilemas que assolam a sociedade.
A escrita de Ana é única, mordaz. Não há espaço para metáforas. A cada conto acompanhamos em ritmo lento, mas profundamente intenso, uma situação de conflito aonde cada personagem confronta seus medos e angústias. A cada conto um tapa, um susto, um alerta, um confronto.
Em A Fila, primeiro conto que dá nome ao livro, conhecemos a história da pequena Natasha que está na companhia da mãe numa fila à espera de um refrigerador. Em meio à multidão a garotinha encontra-se sozinha, já sem a mãe, que a deixa na fila para socorrer o irmão que encontra-se faminto e doente em casa. O cenário descrito é desolador, caótico, recordando-nos a época do comunismo onde pessoas se aglomeravam em situações humilhantes. Sob o olhar da pequena Natasha sentimos a dor, a humilhação, o sentimento de impotência do ser humano. A partir desse primeiro conto Ana Esterque passa a destrinchar as dores da alma humana.
A escrita de Ana Esterque é tão afiada como uma navalha. Em muitos momentos me fez recordar de Nelson Rodrigues e seu estilo despojado de romantismo. Fiquei encantada com sua escrita e genialidade. Sua sutileza, seu olhar crítico, sua habilidade em tornar poético algo tão cruel.
A Fila é um livro de leitura rápida, daqueles que se lê num curto espaço de tempo por conter apenas dez contos, mas não se deixe enganar por sua brochura. Os contos são tão fortes, carregados de uma tenacidade tão profunda que o livro parece ter o dobro de seu tamanho. A cada história somos levados a refletir sobre como o ser humano lida com suas frustrações, o quanto somos levianos, covardes, omissos, o quanto estamos definitivamente, perdidos, sozinhos numa multidão. Um conto sobre pobreza, desamparo, arbitrariedade, solidão.
No conto Boa noite, Isabella nos deparamos com uma história aterrorizante sobre uma jovem professora universitária que decide passar o feriado prolongado em casa para corrigir os trabalhos dos alunos. Foi pra mim o conto mais difícil de ser digerido. É triste, repugnante, terrivelmente doloroso.
Em Amor Delicado é o coelho quem narra sua trajetória. Isso mesmo, um coelho. Achei genial a ideia da autora. Por vezes, acreditei que o coelho era uma pessoa, tamanha sua racionalidade, seus argumentos e perspectivas. A relação criada com a dona, uma menina que acredita que pode domesticá-lo como um cão é singela, peculiar. O conto vai destacar a relação que estabelecemos com o tempo. Aliás, o tempo aqui é o mote principal para refletirmos sobre como aproveitamos o tempo.
Todos os contos são incríveis, cada um explorando um sentimento. Um novelo a ser desfiado pelo leitor.
Um livro para ser apreciado, paulatinamente. A cada conto uma imagem refletida sobre o que somos, o que almejamos e para onde estamos caminhando. Um retrato da vida como ela é.
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