Duanne 06/11/2009
Citações
Não é resenha, são trechos do livro.
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"O empregado estende-me o pires com a conta hipocritamente dobrada. Por que será que se dobram as contas? Por que será que falsificamos tudo? Hã? Ah, as onomatopéias. Pago e levanto-me, deixo umas moedas adicionais, também hipócritas, passo ao lado das mulheres, três parcas maléficas, três vezes três vezes três, noves fora, coisa nenhuma. Por que dobram as contas? Por que dobram? Por que se dobram as pessoas? Por que se dobram? Porquê?"
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"E mostrou. As unhas, amarelas, encurvavam-se para baixo, contornavam a cabeça dos dedos e prolongavam-se para dentro, como biqueiras ou dedais córneos. O espectáculo metia nojo, revolvia o estômago. E quando perguntaram a este homem adulto por que não cortava ele as unhas, que o mal era só esse, respondeu: 'Não sabia que era preciso'.
As unhas foram cortadas. Cortadas a alicate. Entre elas e cascos de animais a diferença não era grande. No fim de contas (pois não é verdade?), é preciso muito trabalho para manter as diferenças todas, para alargá-las aos poucos, a ver se a gente atinge enfim a humanidade.
Mas de repente acontece uma coisa destas, e vemo-nos diante de um nosso semelhante que não sabe que é preciso defendermo-nos todos os dias da degradação. E neste momento não é em unhas que estou a pensar."
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"Demasiado esquecemos que os homens são de carne facilmente sofredora. Desde a infância que os educadores nos falam de mártires, dão-nos exemplos de civismo e moral à custa deles, mas não dizem quanto foi doloroso o martírio, a tortura. Tudo fica no abstracto, filtrado, como se olhássemos a cena, em Roma, através de grossas paredes de vidro que abafassem os sons, e as imagens perdessem a violência do gesto por obra, graça e virtude da refracção. E então podemos dizer, tranquilamente, uns aos outros, que Giordano Bruno foi queimado. Se gritou, não ouvimos. E se não ouvimos, onde está a dor?
Mas gritou, meus amigos. E continua a gritar."
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"A história que eu decidira contar e que o título resume, levou muito mais tempo. Foram doze dias e doze noites nuns montes da Galiza, com frio, e chuva, e gelo, e lama, e pedras como navalhas, e mato como unhas, e breves intervalos de descanso, e mais combates e investidas, e uivos, e mugidos. É a história de uma vaca que se perdeu nos campos com a sua cria de leite, e se viu rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho. Poderemos imaginar esta longuíssima batalha, esta agonia de viver no limiar da morte, de ter de lutar por si mesma e por um animalzinho débil que não sabe ainda valer-se? Um círculo de dentes, de goelas abertas, as arremetidas bruscas, as cornadas que não podem falhar. E também aqueles momentos em que o vitelo procurava as tetas da mãe, e sugava lentamente, enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas.
Não imaginemos mais, que não podemos. Digamos agora que ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, mais o vitelo, e levados em glória para a aldeia, como heróis atrasados daquelas antigas histórias que se diziam ás crianças para que aprendessem lições de coragem e sacrifício. Mas este conto é de tal maneira exemplar, que não acaba aqui: vai continuar por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tornara brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta. Mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de perceber que, tendo aprendido a lutar, aquele inconformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais."
(trechos das crônicas, na ordem: "As Personagens Erradas", "Não sabia que era preciso", "Os Gritos de Giordano Bruno" e "Apólogo da Vaca Lutadora". Mais aqui: http://bit.ly/1Hsu2I)