Marselle Urman 06/04/2019
Obra prima
Essa é a segunda vez que leio essa grande obra. Pra mim é difícil falar d'Os Maias com um olhar puramente crítico, pois sou apaixonada por esse livro. O texto será longo, desculpo-me.
Enquanto em "O primo Basílio", Eça trata da classe média, aqui o foco é a altíssima burguesia lisboeta. Carlos Eduardo foi o primeiro homem de seu sobrenome a ganhar uma libra com o fruto de seu trabalho (embora não tenha insistido em trabalhar, por motivos óbvios). Afinal, uma pena que um homem de sua estirpe quisesse aplicar emplastros em pobres doentes.
Ainda assim, entre saraus, óperas, festas regadas a jogos e poesia, um dispêndio sem fim de fortunas ilimitadas, sempre se antevê uma ambição de grandes feitos, nunca trazida a cabo. Carlos equipa seu consultório e seu laboratório com o primor da ciência e da decoração, e se cansa em pouco tempo. Ega planeja "o romance do século", do qual escreve poucos capítulos, mais absorvido pela paixão de sua amante casada. Grandes planos, naturezas fugazes, preguiças sem fim. Laborar, mesmo naquele grande projeto de mudar o mundo demanda demasiado energia. A lassidão sempre vence . Tedioso - você pode pensar. Mas não. Temos tanto em comum, brasileiros, com nossa herança portuguesa. De qualquer classe social, amamos o blasé, o chic, o espetaculoso, a tragédia e a fofoca. Prezamos os grandes centros de civilização estrangeiros e desprezamos nossa própria rudeza camponesa.
Menos o Alencar. Capítulo à parte.
Mas devo dizer que o que mais se destacou pra mim nessa releitura foram os retratos fortes de uma sociedade que se pensava moderna e era absolutamente patriarcal. Demonstrado na figura do ilustríssimo, puríssimo, intocável Afonso da Maia. Um estandarte. Mesmo?
Pedro da Maia, tímido, doentio, educado nos costumes religiosos pela mãe - aos dezoito, dezenove, "já tivera seu bastardozinho". Quase uma nota de rodapé, ainda assim esse feito seria fonte de orgulho ao pai. Até morrer de amores por aquela mulher inadmissível, que não serviria nem pra ser sua amante - meramente por ser filha de um escravocrata. Escravidão, essa, que o Ega defende a bandeiras deflagradas num certo capítulo. "Mas o Ega só queria ser um Mefistófeles polêmico, pura ironia", é defensível. Mas quando falo de preconceito racial e machismo absurdo, não falo de um fato isolado. É a vida como ela é, a sociedade como um dia ela foi. Não por isso menos chocante e grotesco.
A ironia e o tom de humor intercalado na obra não amenizam os fatos. A infidelidade de uma certa esposa foi um caso simples, resolvido com uma surra de begaladas. Perfeitamente normal, certo? Quase cômico. Uma outra grande dama, ao se revelar não ser exatamente a esposa intocável que todos a julgavam, se transforma imediatamente quase numa meretriz. Não é casada, é amaziada. Já teve dois homens em sua vida, não importam as tragédias pessoais de sua triste história. Portanto, não serve pra ser esposa, independente de sua educação, espírito e caráter. Uma outra mulher, de classe subalterna e uma excelente empregada, é vista como uma aberração e com asco por um fidalgo que a espiona numa cena de amor tórrido. Ele não é seu empregador, mas quer demiti-la por sua lascívia - independente de ela ser excelente em seu trabalho. Mulheres, afinal, não tem o direito de expressar nem realizar seus desejos sexuais - a não ser como dignas amantes nos braços dos ditos fidalgos. É uma sociedade tão absurdamente hipócrita. Tão parecida com a nossa.
Pra mim, a personagem mais forte é Maria Monforte. Ela me fez pensar na Geni, do zeppelin de Chico Buarque. Seu pai, malgrado seus próprios pecados ( e ninguém sabe a vida que ele teve) fez das tripas coração para dar a melhor educação à sua filha, sua pérola, que esteve fielmente ao seu lado até o momento de sua morte. E ainda assim, ela, moça, belíssima, prendada, educada, rica, foi desde sempre vilipendiada por aquela sociedade das aparências. Maria foi forjada pelo ferro da rejeição. Seu gosto por aventuras, que decerto também morava no coração secreto de diversas outras damas, expressou-se primeiro nos saraus em sua casa , onde ela fumava e jogava bilhar com seus convidados homens. Para preocupação de seu apaixonado marido. Qual mulher respeitável faria isso, quando deveria estar somente a bordar e recolher-se cedo? Uma vadia, afinal, toda a sociedade exclamou após a tragédia. "Taca pedra na Geni". E depois vieram seus anos amargos. Seus anos de miséria e degrego. Pária. Destruidora. Quando tudo o que ela fez foi viver sua fúria e paixão, coisa à qual não tinha direito. Mesmo tendo sido a melhor mãe que as condições e seu temperamento permitiram. Mesmo tendo um bom coração e cuidando do pai até sua morte e de outros doentes, com desapego. Seu pecado foi viver. Uma mulher não tinha direito a isso. Vamos inverter a situação? Se fosse um daqueles homens brancos e ricos, fidalgos, a terem vivido o que Maria viveu? Seria quase herói.
Quanto à Grande Tragédia do enredo. A primeira reação do protagonista é descrença - como isso poderia acontecer com ele, na sociedade de jovens de alta sociedade em que vivia? Aquela era uma situação de novela, para os cortiços, para os deseducados, para os quase bestiais. Ele, ser angélico, dono de privilégios desde o berço, que só conhecera alegrias nessa vida e sempre pôde se dar ao luxo de fazer o que lhe aprouvesse...acima do bem e do mal. Vou forçar a mão na comparação porque aqui na ficção a tragédia foi fortuita e acidental, mas não posso deixar de ver um paralelo com, por exemplo, o filho de um ex milionário que atropelou e matou um rapaz pobre e cuja pena final foi pagar cesta básica. Com um ex-presidente corrupto que passou apenas dois dias na cadeia - detentor de fortuna e poder, e segredos potencialmente nocivos a alguns outros poderosos. E tantos outros exemplos que vejo hoje com facilidade.
Essa foi minha resenha mais longa. Novamente peço perdão - Os Maias merecem tudo isso e muito mais.
Olímpia SP, 06/04/2019