camila del rio 11/04/2024
? um sopro de vida
?Eu ocasionalmente, eu que escrevo, procuro para cada palavra o estalar inconsciente de um sentimento cruciante.?
mais uma leitura agradabilíssima de Clarice Lispector. não é à toa que a considero minha autora favorita ? todas as suas obras ressoam muito comigo, e eu me sinto quase que conectada a ela quando mergulho em uma de suas histórias.
apesar de ter algumas partes vagarosas, Um Sopro de Vida aborda a questão do escritor com imersão extrema, pois o leitor é bombardeado com o fluxo de pensamentos de dois devotos à arte da literatura: o Autor e sua personagem, Ângela Pralini. é incrível presenciar a maneira como suas mentalidades se cruzam e descruzam, se assimilam e contrastam. mesmo as ideias repetidas nos comentários das duas vozes narrativas não são descritas com as mesmas palavras, o que confirma que a jornada do escritor é solitária por natureza.
esse livro tem um pouco de Frankenstein, no sentido de que há uma forte ligação entre criação e criatura, e por vezes um sobrepõe o outro. o Autor despreza Ângela, o Autor ama Ângela, mas está certo de que ela é o seu não-eu, e ao mesmo tempo um reflexo dele mesmo. isso porque os personagens estão sempre ligados a quem os desenvolve, mas sempre acabam por desenvolver intenções e desejos próprios. Ângela fala muito sobre Deus, e é interessante pensar que a entidade a quem ela atribui todo esse poder deve ser o Autor, que a enxerga com uma autonomia inerente e indomável. em certa parte do texto, o Autor diz que a personagem endeusa o Desconhecido, aquilo que ela não compreende ? enquanto tal circunstância o faz sentir temor.
acho incrível poder presenciar a maneira como a escrita de Clarice se desenrola em algo que diz tanto sobre ela e, ao mesmo tempo, cria ainda mais mistérios. ela possui uma qualidade inimitável por qualquer autor atual, um fluxo de pensamentos e sentimentos que ressoam fortemente conosco mas que jamais conseguiríamos expressar com palavras, algo que ela realiza constantemente.