spoiler visualizarEuriano 09/12/2021
Principais pontos do livro "Pregação"
Concluí que a diferença entre um sermão ruim e um bom sermão depende em grande medida do pregador ? dos seus dons e habilidades e da preparação da mensagem. Entender o texto bíblico, extrair dele um esboço e um tema claros, elaborar um argumento convincente, enriquecê-lo com ilustrações tocantes, metáforas e exemplos práticos, analisando de forma incisiva as motivações do coração e seus pressupostos culturais e fazendo aplicações específicas à vida real, todas essas coisas exigem um trabalho demorado. Preparar um sermão como esse exige horas de dedicação, e conseguir elaborá-lo e apresentá-lo de forma hábil exige anos de prática.
Contudo, embora a diferença entre um mau sermão e um bom sermão seja sobretudo responsabilidade do pregador, a diferença entre uma boa pregação e uma pregação excelente depende principalmente da ação do Espírito Santo no coração do ouvinte bem como no do pregador.
Essa distinção poderá levá-lo a supor que os comunicadores cristãos nada precisam fazer a não ser explicar o texto bíblico e que ?cabe a Deus fazer o resto?. Esse é um equívoco e um reducionismo perigoso da tarefa da pregação.
No primeiro manual de pregação cristã, Agostinho escreveu que fazia parte dos deveres dos pregadores não apenas probare (instruir e provar), mas também delectare (prender a atenção e encantar) e flectere (comover as pessoas e levá-las à ação).3 Embora Agostinho condenasse as filosofias pagãs por sua falência, ele acreditava que os pregadores cristãos pudessem aprender com suas obras sobre retórica.
No fim das contas, a pregação tem dois objetos básicos em vista: a Palavra e o ouvinte humano. Não basta ceifar o trigo; ele deve ser preparado de forma que seja comestível, caso contrário não alimentará nem dará prazer. A pregação sadia brota de dois amores ? amor à Palavra de Deus e amor às pessoas ?, e de ambos brota o desejo de mostrar às pessoas a graça gloriosa de Deus. Portanto, embora somente Deus possa abrir os corações, o comunicador deve proporcionar bons momentos e matéria para reflexão ao apresentar a verdade de forma precisa, explicitando-a para o coração e para a vida dos ouvintes.
Em que consiste, portanto, a boa pregação? Vamos juntar todas essas ideias em uma única descrição.
É ?anunciar [?] o mistério de Deus? (1Co 2.1). É pregar biblicamente e estabelecer uma conexão por meio do texto cheio de autoridade. Em outras palavras, devemos pregar a Palavra e não nossa opinião. Quando pregamos as Escrituras, falamos ?as palavras de Deus? (1Pe 4.11). É preciso deixar claro o sentido do texto no seu contexto ? tanto em seu tempo histórico como no âmbito de toda a Escritura. Servir à Palavra é fazer sua exposição, isto é, extrair a mensagem do texto com fidelidade e discernimento, tendo em vista todo o restante do ensino bíblico, para que não ?se explique um ponto da Escritura de tal modo que seja irreconciliável com outro?.16
É também anunciar ?tanto [a] judeus como [a] gregos? (1Co 1.24), pregando de forma persuasiva, envolvendo a cultura e tocando os corações. Isso significa não apenas informar a mente, mas também capturar o interesse e a imaginação do ouvinte persuadindo-o ao arrependimento e à ação. O bom sermão não é como um porrete com que se bate na vontade, e sim como uma espada que penetra o coração (At 2.37). Em seu melhor, ele penetra nossos alicerces, analisando-nos e revelando-nos a nós mesmos (Hb 4.12). Ele deve ser alicerçado na exposição da Bíblia, porque as pessoas não compreendem um texto até que vejam como ele se relaciona à sua vida. Ajudar as pessoas a enxergar isso é a tarefa da aplicação, que é algo muito mais complicado do que geralmente admitimos. Conforme dissemos, pregar ao coração e à cultura caminham juntos, porque as narrativas culturais afetam profundamente o sentimento de identidade, a consciência e a compreensão da realidade de cada pessoa.
Charles Spurgeon, o célebre pregador britânico do século 19, era ousado em sua insistência de que todo sermão deveria pôr Cristo em destaque, para que todos os ouvintes o contemplassem. Ele se queixava de que frequentemente ouvia sermões ?muito eruditos [?] magníficos e sofisticados?; no entanto, tudo girava em torno da verdade moral e da prática ética, bem como em torno de conceitos inspiradores, e não havia ?nenhuma palavra sobre Cristo?.
É perigoso, portanto, incidir na crença antibíblica de que o ministério da Palavra consiste simplesmente na pregação de sermões. Como diz Adam, isso ?fará com que a pregação tome sobre si um peso que não pode carregar; isto é, o peso de fazer tudo o que a Bíblia espera de cada forma de ministério da Palavra?.7 Nenhuma igreja deve esperar que toda transformação de vida decorrente da Palavra de Deus (Jo 17.17; cf. Cl 3.16,17 e Ef 5.18-20) venha estritamente por meio da pregação. Não devo esperar nem mesmo que os melhores sermões que ouço me moldem à semelhança de Cristo. Preciso também de ou tros cristãos à minha volta que saibam ?maneja[r] bem a palavra da verdade? (2Tm 2.15) para me encorajar, me instruir e me aconselhar. Preciso também de livros de autores cristãos cujo conteúdo me edifique. Também não é certo esperar que aqueles que estão fora da igreja, e que precisam ouvir e compreender o evangelho, sejam alcançados somente através da pregação. Eu mesmo cheguei à fé não porque ouvi alguma pregação ou porque alguém disse alguma coisa, mas através dos livros que li. (Alguma surpresa nisso?) É preciso cuidado para não imaginar que o sermão de domingo possa suportar toda a carga do ministério da Palavra da igreja.
CAPÍTULO 1: PREGANDO A PALAVRA
Se alguém fala, fale como quem comunica as palavras de Deus? [1Pe 4.11].
Hughes Oliphant Old oferece cinco tipos básicos de sermões que distingue ao longo dos séculos, aos quais chama de expositivos, evangelísticos, catequéticos, festivos e proféticos.
Ele define a pregação expositiva como ?explanação sistemática da Escritura feita semanalmente [?] durante as reuniões regulares da igreja?.6 Os outros quatro tipos de pregação talvez pareçam, à primeira vista, muito diferentes uns dos outros; contudo, em um aspecto, eles são o mesmo tipo. Diferentemente da exposição, essas outras quatro formas de pregação não são necessariamente organizadas em torno de uma única passagem da Escritura. Isso porque o principal objetivo de cada uma não é revelar ideias no âmbito de um único texto bíblico, e sim comunicar uma ideia bíblica a partir de vários textos. Old chama essa estratégia mais ampla de pregação ?temática? ou ?tópica?. O sermão tópico pode ter vários propósitos. Pode querer comunicar a verdade aos não crentes (pregação evangelística) ou instruir os crentes em um aspecto específico da confissão e teologia de sua igreja (pregação catequética). A pregação festiva ajuda o ouvinte a celebrar as festividades do calendário da igreja, como Natal, Páscoa ou Pentecostes, ao passo que a pregação profética se refere a um momento histórico ou cultural específico.
Há, portanto, no fim das contas, duas formas básicas de pregação: expositiva e tópica.
Imagine que você queira ensinar a universitários o que a Bíblia diz sobre a Trindade ? que Deus é um e três. Não há praticamente nenhum texto bíblico que, sozinho, lhe permitiria expor essa doutrina profundamente bíblica. Em vez disso, você terá de mencionar e citar diversos textos em apoio ao seu ensino, sendo assim uma pregação tópica. Na pregação expositiva, diferentemente disso, seu trabalho consiste em ir aonde aquele texto específico o levar. Os pontos da mensagem emergirão à medida que o texto for explicado, que seu significado for extraído.
A pregação expositiva fundamenta a mensagem no texto, de modo que todos os pontos do sermão sejam extraídos do texto e assim a pregação se detenha nas principais ideias nele contidas. Ela alinha a interpretação do texto com as verdades doutrinárias do restante da Bíblia (mostrando-se sensível em relação à teologia sistemática). E ela sempre situa a passagem dentro da narrativa bíblica, mostrando de que modo Cristo é o cumprimento final do tema do texto (mostrando-se sensível em relação à teologia bíblica).
EXPOSITIVA - A DIETA DA IGREJA
Assim como ao longo da história da igreja ambos os tipos de pregação foram necessários, assim também professores e pregadores cristãos de hoje precisam ver os dois como formas legítimas que eles podem usar habilmente. Contudo, eu diria que a pregação expositiva deve constituir a dieta principal da pregação para a comunidade cristã.
Portanto, a razão primordial pela qual deveríamos recorrer habitualmente à pregação expositiva se deve ao fato de que ela expressa e põe em ação nossa crença na Bíblia toda como Palavra de Deus, viva e eficaz e revestida de autoridade.
As outras razões a favor da pregação expositiva como dieta principal da igreja são mais práticas, porém não menos importantes. Uma delas é que um sermão expositivo bem elaborado permite que os ouvintes reconheçam mais facilmente que a autoridade não está nas opiniões de quem fala ou em seu raciocínio, mas em Deus, em sua revelação dada por meio do próprio texto. Isso não fica claro em sermões que tocam de leve na Escritura e gastam mais tempo com histórias, longos argumentos ou reflexões intelectuais. O ouvinte poderá facilmente escapar da mensagem incômoda pensando: ?Bem, essa é sua interpretação?.
Outra razão semelhante é que a pregação expositiva permite que o texto estabeleça também a agenda do pregador. Ela ajuda o pregador a resistir à pressão de adaptar demais a mensagem às preferências da cultura. Ela nos remete a assuntos dos quais preferiríamos não tratar e que talvez não tenhamos escolhido, uma vez que algumas perspectivas da Bíblia ? por exemplo, em assuntos como sexualidade ? são extremamente impopulares hoje em dia. A pregação expositiva nos encoraja a declarar a vontade de Deus em tais assuntos e também nos compele a encontrar formas de abordar e de lidar publicamente com questões difíceis.
Desse modo, a exposição pode evitar que lidemos apenas com nossos temas favoritos e com as questões que mais nos atraem.
Na pregação expositiva, o sentido é descoberto analisando-se o contexto, o contexto, o contexto. Para compreender o sentido de uma frase, temos de indagar: ?De que maneira esse versículo se encaixa no restante da passagem??. Para compreender o sentido da passagem, temos de perguntar: ?De que maneira ela se encaixa no restante do livro??. Para compreender a mensagem do livro, temos de indagar: ?Como ele se encaixa no restante da Bíblia??. Se procedermos dessa maneira semana após semana, descobriremos qual é a trama principal da Bíblia ? o evangelho de Jesus.
Exemplo de uma série expositiva de dois anos:
Assim, por exemplo, uma série expositiva de dois anos poderá apresentar a seguinte disposição:
Outono: Atributos de Deus (todos textos extraídos dos profetas); Credo dos Apóstolos (todos textos extraídos do Evangelho de João).
Dezembro: Cânticos de Natal (cânticos de Lucas: de Zacarias, de Maria e dos anjos).
Inverno: O novo nascimento (textos de Pedro e Paulo sobre regeneração e novo nascimento); Por que Jesus morreu? (Paixão segundo Mateus 26?28).
Primavera: Viver uma vida de fé em um mundo pluralista (Daniel e Ester).
Verão: O Senhor ora (João 17 e o Pai-Nosso).
Outono: Nossas lutas e a graça de Deus (Jacó: Gênesis 25-32, 48).
Inverno: O que Jesus veio fazer? (as declarações de ?amém? de Jesus nos Evangelhos).
Primavera: Vida de fé (Abraão: Gênesis 12?22).
Verão: debatendo com Jesus (Marcos 11 e 12).
Outono/inverno/primavera: Conhecendo a Deus (Provérbios); Paixão segundo João; Vivendo em sabedoria (Provérbios).
CAPITULO 2: PREGANDO O EVANGELHO SEMPRE
Quando um homem é levado a atos de obediência pelo temor da ira divina revelada na Lei e não pela fé em seu amor revelado no evangelho, quando ele teme a Deus por causa de seu poder e justiça e não por causa de sua bondade, quando Deus é para ele mais um Juiz vingador do que um Amigo e Pai compassivo e quando para ele Deus se apresenta terrível em sua majestade e não infinito em graça e misericórdia, ele mostra com isso que está sob o domínio ou, no mínimo, sob a prevalência de um espírito de legalismo.
? John Colquhoun2
Para compreender e explicar qualquer texto da Bíblia, é preciso situá-lo em seu contexto, o que significa também inseri-lo no contexto canônico: a mensagem da Bíblia como um todo. Que mensagem é essa? Da perspectiva do Antigo Testamento, é a de que a ?salvação vem do SENHOR? e somente do Senhor.
Mostrar de que maneira um texto se insere na totalidade do contexto canônico, portanto, é mostrar de que maneira ele aponta para Cristo e para a salvação do evangelho, para a grande ideia de toda a Bíblia. Toda vez que você expõe um texto bíblico, sua exposição não estará completa a menos que você demonstre de que maneira ele nos mostra que não podemos salvar a nós mesmos e que só Jesus pode fazê-lo. Isso significa que temos de pregar Cristo em todos os textos, o que equivale dizer que temos de pregar o evangelho o tempo todo, em vez de nos contentarmos com pregações moralistas ou de caráter inspirador genérico.
OS DOIS INIMIGOS
Desde a Reforma protestante, entende-se que há dois erros ou enganos aparentemente opostos em que podemos cair e assim deixar de compreender esse evangelho bíblico e seu poder. São eles o ?legalismo?, a perspectiva segundo a qual podemos pôr Deus na posição de devedor, ao buscarmos alcançar sua bênção com nossa bondade, e o ?antinomianismo?, a perspectiva segundo a qual podemos nos relacionar com Deus sem obedecer a sua Palavra e seus mandamentos. Falta a essas duas palavras, derivadas dos termos latino e grego para ?lei?, um aspecto crucial de como o evangelho funciona.
O legalismo é muito mais do que a crença consciente de que ?posso ser salvo pelas minhas boas obras?. Trata-se de uma teia de atitudes de coração e de caráter. É o pensamento de que o amor de Deus por nós depende de alguma coisa que podemos ser ou fazer.
Um espírito legalista nos leva a sermos egoístas, severos, extremamente sensíveis à crítica, profundamente inseguros e com inveja dos outros porque nossa ?sensação de identidade e de valor pessoal se entrelaçou com nosso desempenho e com seu reconhecimento, em vez de estar enraizado e alicerçado em Cristo e em sua graça [i]merecida?.
O antinomianismo também é mais do que apenas a crença formal de que ?não tenho de obedecer à lei de Deus?. É o pensamento de que, como Deus me ama independentemente do que eu tenha feito, ele não se importará com o fato de eu viver uma vida imoral ou não. É a atitude que diz ?Deus me aceita como sou; ele quer apenas que eu seja eu mesmo?.
É na Carta aos Romanos que essas duas mentalidades são apresentadas de forma mais destacada. Em Romanos 1.18-32, Paulo mostra que os gentios pagãos, uma vez que desconsideram a lei de Deus ? e, portanto, são contrários à Lei ?, perderam toda e qualquer ligação com ele. Em seguida, em Romanos 2.1-3.20, Paulo dá sequência a seu argumento dizendo que os judeus cumpridores da Lei e que acreditam na Bíblia também estão longe de Deus. Por quê? Porque confiam em sua observância à Lei, e não na graça divina, para se relacionar com Deus e, portanto, são legalistas.
Os comunicadores da Bíblia devem ter sempre em mente esses dois pontos de vista sobre a vida quando pregam e ensinam. Textos individuais geralmente apresentam exortações sobre como o crente deve viver que, quando expostas isoladamente do restante da Bíblia, podem servir de respaldo à perspectiva legalista. Outras passagens descreverão a provisão graciosa de Deus de salvação e amor incondicional, as quais, isoladamente, podem dar a impressão de que a graça gratuita não leva à mudança de vida.
William Perkins não quer dizer com isso que podemos simplesmente atribuir cada um dos versículos da Bíblia a uma ou outra categoria: a categoria dos que nos dizem o que devemos fazer e a dos que nos dizem que somos salvos a despeito do que tenhamos feito. Ele dá o exemplo de dois textos que, poderíamos dizer, ?juntam as duas coisas?: João 14.21 e 14.23.6 No primeiro versículo, Jesus diz a seus discípulos: Aquele que tem os meus mandamentos e a eles obedece, esse é o que me ama. E aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele?. Esses textos deixam claro que o evangelho transforma a obediência aos mandamentos de Deus de meio legalístico de aquisição da salvação em uma resposta amorosa à salvação recebida. A obediência à lei de Deus, que emana da graça do evangelho, torna-se uma maneira de conhecer e amar aquele que nos salvou a um custo infinito para si mesmo, e também uma maneira de se assemelhar a ele e se deleitar nele. João 14, portanto, não é nem uma passagem simples da ?lei? nem uma passagem do ?evangelho em vez da lei?.
Se você acha que o legalismo é simplesmente uma ênfase exagerada na lei, pensará que o antídoto consiste em falar menos sobre obediência e mais sobre aceitação e perdão. Se você acha que o antinomianismo é simplesmente uma atitude frouxa demais em relação à moralidade e à lei, então presumirá que o remédio consiste em falar menos de misericórdia e de aceitação e mais da justiça de Deus e de seus santos mandamentos. Em suma, você tentará curar um com uma dose do outro. O resultado será um desastre, porque ambos têm a mesma causa básica. Os dois decorrem da crença de que Deus não nos ama verdadeiramente ou não deseja nossa alegria, e da nossa incapacidade de ver que ?tanto a lei quanto o evangelho são expressões da graça de Deus?.13 Tanto para o legalista quanto para o antinomianista, a obediência à lei é simplesmente uma forma de obter as coisas de Deus, e não uma forma de ter acesso e assemelhar-se a ele, de conhecê-lo, de se deleitar nele e de amá-lo pelo que ele é.
A única coisa que porá fim ao legalismo não será apenas o princípio abstrato de que ?somos aceitos e perdoados?, mas um novo entendimento da bondade de Deus e do alto preço de seu amor em Jesus Cristo.
Ferguson conclui que tanto o legalismo quanto o antinomianismo exigem, basicamente, o mesmo tratamento: uma nova visão da beleza de Deus e de sua graça gloriosa, livre e dispendiosa. Tanto o legalismo quanto o antinomianismo são curados unicamente pelo evangelho.
Pregar sempre o evangelho é pregar Cristo sempre, em todas as passagens.
Somente se pregarmos sempre Cristo poderemos mostrar de que maneira a Bíblia toda faz sentido.
Ver Lc 24 (caminho de Emaus)
Por exemplo, Hebreus 10.5,6 cita Salmos 40.6-8 como algo dito por Cristo quando ?[entrou] no mundo?.
Tu não quiseste sacrifício nem oferta; abriste-me os ouvidos; não exigiste holocausto nem oferta de expiação pelo pecado. Então eu disse: Aqui estou, no rolo do livro está escrito a meu respeito. Gosto de fazer a tua vontade, ó meu Deus?
Contudo, ao olharmos para o salmo 40, nada do que vemos indica de forma alguma que a pessoa que fala é Jesus ou alguma figura messiânica. Por que então o autor de Hebreus considera que esse salmo fala sobre Jesus? Ele o faz porque sabe que Jesus disse a seus discípulos em Lucas 24 que toda a Escritura é realmente a seu respeito. A Bíblia é, no fim das contas, uma única e grande história que chega ao clímax em Jesus Cristo.
Portanto, pregar Cristo sempre é uma maneira de mostrar às pessoas de que maneira a Bíblia toda faz sentido. Conforme já vimos, porém, o pregador tem duas responsabilidades. Ele está compromissado não apenas com a verdade da Bíblia, mas também com as necessidades espirituais dos ouvintes. E, de fato, pregar Cristo sempre é também a única maneira de ajudar verdadeiramente as pessoas a mudar de dentro para fora.
Qualquer sermão que diz a seus ouvintes somente como devem viver, sem colocar esse padrão no contexto do evangelho, dá a eles a impressão de que podem ser completos o suficiente para viver uma vida equilibrada se realmente se esforçarem para isso. Ed Clowney ressalta que, se sempre contamos uma história específica da Bíblia sem colocá-la na história da Bíblia (sobre Cristo), na verdade, mudamos seu significado para nós.
Se você estiver pregando o texto em que José resiste à tentação da esposa de Potifar, ou aquele em que Josias está lendo perante a nação reunida a Lei esquecida de Deus, ou o texto em que Davi bravamente enfrenta Golias; e aí você extrai a lição para a vida ? fugir da tentação, amar a Escritura e confiar em Deus no perigo ?, mas encerra o sermão aí? Nesse caso, você estará simplesmente reforçando o modelo pessoal de salvação do coração humano. Seu sermão será compreendido como um encorajamento aos ouvintes para que obtenham a bênção de Deus através do viver correto. Se todas as vezes você não associar o texto, de modo enfático e claro, com a salvação em Cristo e se não mostrar como ele nos salvou resistindo à tentação, cumprindo perfeitamente a Lei, tomando sobre si os gigantes finais do pecado e da morte ? tudo por nós, como nosso substituto ?, você estará apenas confirmando moralistas em seu moralismo. Somente quando enfatizarmos o evangelho, que somos pecadores amados em Cristo ? tão amados que não temos de nos desesperar quando erramos, tão pecadores que não temos direito algum de nos sentirmos orgulhosos quando fazemos algo certo ?, poderemos ajudar nossos ouvintes a escapar de um mundo moralista espiritualmente bipolar.
ERRO 1: PREGAR UM TEXTO SOBRE JESUS SEM PREGAR O EVANGELHO.
Pregar o evangelho é falar sobre salvação, sobre o Cristo que morreu por nós, e não apenas sobre os milagres que ele fez pelo povo.
É possível pregar o Novo Testamento e não pregar realmente Cristo e sua obra salvífica. Achamos que nosso problema consiste em saber como tirar Jesus de um salmo em especial ou de 2Reis. Não, o problema é maior do que esse. Pregar Cristo significa pregar o evangelho. Pregar o evangelho significa pregar Cristo, sua obra de salvação e sua graça, e podemos ser malsucedidos nisso em qualquer parte da Bíblia.
ERRO 2: PREGAR CRISTO SEM REALMENTE PREGAR O TEXTO.
Há muitas passagens nos profetas, por exemplo, em que Deus fala sobre como enviará um rei que fará justiça completa e imparcial. Em Isaías 11.3, lemos que esse rei ?não julgará pela aparência, nem decidirá pelo que ouvir dizer?. Ele reparará os erros e fará justiça ao oprimido e ao fraco. Em Isaías 11.1-16, lemos sobre o ?renovo? justo (Jr 23.5) que fará tudo isso, e essa pessoa costuma ser identificada como o Messias. Os leitores originais de Isaías provavelmente compreenderam que ele se referia a um futuro rei grandioso. Aqueles que pregam sobre esse capítulo têm a tendência de começar rapidamente a mostrar todas as formas pelas quais as descrições de Isaías 11 se aplicam a Jesus e à salvação. Contudo, os ouvintes originais teriam ouvido primeiramente a sonora afirmação da importância da justiça social, de não oprimir o pobre e de viver de forma generosa. Ao apressar o futuro, ficando pouco no tempo do autor (e de seus ouvintes), o pregador poderá perder boa parte do significado da passagem.
Charles Spurgeon conta a história de um ministro galês que conversava com um ministro mais jovem a respeito do sermão que este acabara de pregar.
? Foi um sermão muito pobre ? disse ele ao jovem.
? Por que o senhor acha isso?
Ele respondeu:
? Porque ? disse o ministro galês ? não havia nada de Cristo nele.
nele.
? Bem ? disse o jovem ?, Cristo não estava no texto; não devemos pregar Cristo o tempo todo; devemos pregar o que está no texto.
A conversa prosseguiu:
? Você não sabe, jovem, que em cada cidade, aldeia e pequena vila da Inglaterra, seja onde for, há uma estrada que leva a Londres?
? Sim ? disse o jovem.
? Ah! ? disse o velho pregador. ? Do mesmo modo, de cada texto da Escritura, sai uma estrada para a metrópole da Escritura, que é Cristo. Portanto, meu querido irmão, o que lhe cabe dizer ao tratar de um texto é o seguinte: ?Qual é a estrada que leva a Cristo??. E aí pregue seu sermão percorrendo a estrada em direção à grande metrópole: Cristo. E ? disse ele ? até hoje nunca encontrei um texto que não tivesse uma estrada até Cristo e, se algum dia encontrar uma em que Cristo não esteja presente, farei eu mesmo a estrada. Por mais acidentada que ela seja, ainda assim farei com que chegue ao meu Mestre, pois um sermão não produzirá
bem algum a não ser que haja nele um sabor de Cristo.
Mas não pense que qualquer coisa no texto que lembre vagamente Jesus seja um meio de chegar a ele. Se o texto do Antigo Testamento for sobre o Templo, você poderá pregar Cristo como o Último Templo (João 2). É dessa maneira que a rua principal desse texto se liga a Jesus. Contudo, você não pode simplesmente jogar ali qualquer coisa que pensar. Talvez a corda escarlate que Raabe pendurou do lado de fora de sua janela (Jz 2.18) o leve a lembrar o sangue de Cristo, mas isso não significa que seja isso o que ela representa. Partindo do ponto principal de cada texto, há algum caminho para pregar Cristo com integridade. Siga na direção dessa estrada e caminhe por ela antes de concluir seu sermão.
CAPÍTULO 3: PREGANDO CRISTO EM TODA ESCRITUA
Ele é a esperança dos patriarcas. É o anjo do Senhor.5 Em seguida, vá do livro de Êxodo até Deuteronômio. Ele é a rocha de Moisés. É o cumpridor da Lei ? tanto da lei cerimonial, porque nos torna puros nele, quanto da lei moral, porque recebe a bênção por meio de sua vida perfeitamente justa. Ele é o Último Templo. Vá agora para a história de Israel depois de Moisés. Ele é o comandante dos exércitos do Senhor (Js 5). É o verdadeiro rei de Israel. Na verdade, ele é o verdadeiro Israel. Ele cumpre tudo o que Israel deveria fazer e ser. Olhe agora para os Salmos, os cânticos de Davi, em que Jesus é o doce cantor de Israel (Hb 2.12). Vá então aos profetas e ali encontrará o Rei prometido (Is 1?39), o servo sofredor (Is 40?55) e aquele que cura o mundo (Is 56?66). Procure no livro de Provérbios e verá que ele é a verdadeira sabedoria de Deus. Aos que estão sendo salvos, a cruz é a sabedoria de Deus (1Co 1.22-25).
Ele [Cristo] é Isaque, o amado Filho do Pai que foi oferecido em sacrifício; contudo, não sucumbiu ao poder da morte. Ele é Jacó, o pastor atento, que tanto zelo tem pelas ovelhas que guarda. Ele é José, o irmão bondoso e compassivo que, em sua glória, não se envergonhou em acolher os irmãos, a despeito da condição humilhante e abjeta em que se encontravam. Ele é o grande sacrificador e bispo Melquisedeque, que ofereceu um sacrifício eterno uma vez por todas. Ele é o soberano legislador Moisés, que escreveu sua lei sobre as tábuas do nosso coração por seu Espírito. Ele é o capitão e guia fiel Josué, que nos leva à Terra Prometida. Ele é o vitorioso e nobre rei Davi, que toma pela mão todo poder rebelde e o submete a si. Ele é o magnífico e triunfante rei Salomão, que governa seu reino com paz e prosperidade. Ele é o forte e poderoso Sansão, o qual, por sua morte, subjugou todos os seus inimigos.
Jesus é o verdadeiro e superior Adão, que passou no teste no jardim e cuja obediência nos é imputada (1Co 15).
Jesus é o verdadeiro e superior Abel, que, embora tenha sido morto inocentemente, tem o sangue que agora clama por nossa absolvição, e não por nossa condenação (Hb 12.24).
Jesus é o verdadeiro e superior Abraão, que respondeu ao chamado de Deus para deixar o que lhe era confortável e familiar e partir rumo ao desconhecido, ?sem saber para onde ia? (Hb 11.8), no intuito de criar um novo povo para Deus.
Jesus é o verdadeiro e superior Isaque, que não apenas foi oferecido por seu pai no monte, mas foi verdadeiramente sacrificado por nós. Deus disse a Abraão: ?Agora sei que me amas, porque por mim não poupaste teu filho, teu único filho, a quem tu amas? (Gn 22.12, TA). Agora podemos dizer em relação a Deus: ?Agora sabemos que tu nos amas, porque não poupaste a nós teu filho, teu único filho, a quem tu amas?.
Jesus é o verdadeiro e superior Jacó, que lutou com Deus e levou o golpe da justiça que merecíamos, de tal forma que nós, assim como Jacó, recebêssemos apenas os ferimentos da graça para que nos despertasse e disciplinasse.
Jesus é o verdadeiro e superior José, que, à mão direita do Rei, perdoa aos que o traíram e o venderam e usa seu novo poder para salvá-los.
Jesus é o verdadeiro e superior Moisés, que ocpupa a brecha entre o povo e o Senhor e que media uma nova aliança (Hb 3).
Jesus é a verdadeira e superiora rocha de Moisés, a qual, golpeada pelo cajado da justiça divina, agora nos dá água no deserto.
Jesus é o verdadeiro e superior Jó ? o verdadeiro e inocente sofredor ? que intercede por seus amigos insensatos e os salva (Jó 42).
Jesus é o verdadeiro e superior Davi, cuja vitória se torna a vitória
de seu povo, embora este jamais tenha erguido uma pedra para conquistá-la.
Jesus é a verdadeira e superiora Ester, que não apenas se arriscou a perder um palácio terreno, mas abriu mão do palácio por excelência, o celestial, e não apenas arriscou a vida, mas entregou-a para salvar seu povo.
Jesus é o verdadeiro e superior Jonas, que foi lançado na tempestade para que pudéssemos ser salvos e trazidos a bordo.
Tanto as leis do Sabbath quanto do Jubileu apontam para ele. Ele torna todas elas obsoletas. Jesus é o sacrifício para o qual apontam todos os demais (Hb 10). Jesus é o pão sobre o altar do templo (Jo 6), o velador do lugar santo (Jo 8) e o próprio templo (Jo 2), porque ele media a presença de Deus junto de nós. Jesus cumpre todas as leis de purificação cerimonial em relação a alimentos e de purificação ritual (At 10 e 11). Jesus cumpre a circuncisão. Ela representa o modo pelo qual ele foi cortado de Deus. Agora estamos purificados nele (Cl 2.10,11). Jesus é o cordeiro pascal (1Co 5.7).
Outro exemplo: a história de Davi e Golias. Qual é o significado dessa narrativa para nós? Sem referência a Cristo, a história pode ser pregada do seguinte modo: ?Quanto maiores eles forem, tanto mais cairão, basta você batalhar com fé no Senhor. Talvez você não seja grande e poderoso em si mesmo, mas com Deus ao seu lado poderá derrotar gigantes?.
Se eu ler a história de Davi e Golias como algo que me possa servir de exemplo, ela estará, na verdade, falando de mim. Cabe a mim invocar a fé e a coragem para lutar com os gigantes da minha vida. No entanto, se penso que a Bíblia me remete ao Senhor e à sua salvação, e se leio o texto de Davi e Golias sob essa ótica, muitas coisas saltam à vista. O ponto principal da passagem era que os israelitas não conseguiam enfrentar os gigantes por si mesmos. Eles precisavam de um substituto, alguém que acabou por não ser uma pessoa forte, mas frágil. E Deus usa a fragilidade do libertador como meio que leva à destruição de Golias. Davi triunfa na fraqueza e sua vitória é imputada ao seu povo. Em seu triunfo, eles triunfaram.
Como não ver Jesus nessa história? Ele enfrentou os mais colossais gigantes (o pecado e a morte) e, mais do que um risco à sua vida, isso lhe custou a própria vida. Mas triunfou em sua fraqueza e agora seu triunfo é nosso. Sua vitória nos é imputada. Somente quando eu vir que Jesus combateu os verdadeiros gigantes por mim terei coragem de combater os gigantes comuns da vida (o sofrimento, o desapontamento, o fracasso, a crítica, as dificuldades). Como posso combater o ?gigante? do fracasso se eu não tiver profunda segurança de que Deus não me abandonará? Se vejo em Davi apenas um exemplo para mim, a história jamais me ajudará a combater o fracasso/gigante. Contudo, se eu vir Davi como alguém que aponta para Jesus como meu substituto, cuja vitória é imputada a mim, então posso me colocar diante do fracasso/gigante.
LER A BÍBLIA COMO UM FILME
Meu amigo e professor de Antigo Testamento Tremper Longman me disse certa vez que ler a Bíblia é mais ou menos parecido com a experiência de assistir ao filme O sexto sentido. Esse filme tem um final surpreendente que obriga você a voltar e a interpretar novamente tudo o que viu antes. Da segunda vez que o vemos, não dá para não pensar no final enquanto assistimos ao começo e ao meio do filme. O final lança uma luz que não se pode ignorar sobre tudo o que se passou anteriormente. Do mesmo modo, a partir do momento em que você sabe de que modo todos os enredos de todas as histórias e todos os pontos culminantes de todos os temas convergem para Cristo, você simplesmente não pode deixar de ver que todo texto, em última análise, trata de Jesus.
CRISTO E AS BEM AVENTURANÇAS
Por que você e eu podemos ser tão ricos quanto reis? Porque ele se tornou espiritual e totalmente pobre. Por que você e eu podemos ser consolados? Apenas porque ele sofreu; porque ele chorou inconsolavelmente e morreu nas trevas. Por que você e eu herdaremos a terra? Porque ele foi manso; porque ele foi como um cordeiro perante seus tosquiadores. Porque ele foi destituído de tudo. Chegaram, inclusive, a lançar sortes sobre suas vestes. Por que você eu podemos ser plenos e satisfeitos? Porque, na cruz, ele disse: ?Estou com sede? (Jo 19.28). Por que você e eu alcançamos misericórdia? Porque ele não obteve misericórdia alguma: nem de Pilatos, nem da multidão, nem mesmo do seu Pai. Por que você e eu um dia veremos a Deus? Porque ele era puro. Você sabe o que significa a palavra ?puro?? Significa ter inteireza de mente, sem divisão alguma, com um foco preciso como o do laser. Então, por que um dia veremos a Deus? Porque Jesus Cristo estava determinado a ir para Jerusalém e morrer por nós (9.51).11 Você e eu podemos ver a Deus porque, na cruz, Jesus não pôde vê-lo.
Quando você vê Jesus Cristo sendo pobre em espírito por você, isso o ajuda a se tornar pobre em espírito perante Deus e dizer: ?Preciso de tua graça?. E, no momento em que você a obtém e é preenchido por ela, torna-se misericordioso, pacificador, encontra a Deus em oração e espera um dia pela visão bem-aventurada, para ver a Deus como ele é (1Jo 3.1-3). As bem-aventuranças, assim como quase tudo o mais na Escritura, nos apontam para Jesus muito mais do que imaginamos.
2Ferguson lista quatro maneiras de pregar Cristo no Antigo Testamento através dos gêneros (lei, profetas, poetas) e estágios na história da redenção (Criação, Queda, família abraâmica, Israel sob Moisés, Israel com um rei, ministério de Jesus, ministério dos apóstolos): (1) relacionar promessa e cumprimento, (2) relacionar tipo e antítipo, (3) relacionar a aliança e Cristo, e (4) relacionar a participação proléptica na salvação e sua subsequente concretização. Greidanus faz o mesmo de forma mais abrangente. Ele lista (1) a forma da progressão histórico-redentora, (2) a forma da promessa e da realização, (3) a forma da tipologia, (4) a forma da analogia, (5) a forma dos temas longitudinais, 6) a forma das referências neotestamentárias e (7) a forma de contraste.
Contrariamente a Ferguson e Greidanus, Goldsworthy se concentra em como pregar Cristo de dentro de cada gênero e estágio da história da redenção, discutindo como (1) as narrativas históricas, (2) a Lei, (3) os profetas, (4) a literatura de sabedoria, (5) os Salmos e (6) os textos apocalípticos apontam para Cristo. Em seguida, ele mostra como ter certeza de que a obra salvadora de Cristo é evidenciada quando se prega (7) a partir dos Evangelhos e (8) de Atos e das Cartas. Por fim, Goldsworthy discorre sobre a identificação do tema intercanônico através dos gêneros e estágios em um capítulo intitulado ?Preaching Christ from biblical theology? [Pregando Cristo a partir da teologia bíblica].
CAPÍTULO 4: PREGANDO CRISTO A CULTURA
Terry Eagleton, teórico e crítico da literatura britânica, diz que as ?sociedades não se tornam seculares quando prescindem totalmente da religião, e sim quando não são mais particularmente tocadas por ela?.2 Eagleton acredita que as sociedades ocidentais caminham todas nessa direção em diferentes velocidades. Pela sua definição, uma sociedade onde ainda existem ateus raivosos e hostis à religião ainda não andou muito pelo caminho do securalismo. Vemos atualmente uma quantidade cada vez maior de pessoas que não são hostis à religião, mas indiferentes. O crescimento se dá entre os que costumam se identificar com a opção ?n.d.a.? (nenhuma das anteriores) ? isto é, indivíduos que talvez não sejam necessariamente ateus, mas não se sentem parte de uma instituição religiosa específica ou mesmo de uma tradição. Essas pessoas não veem necessidade alguma de investigar soluções religiosas possíveis para nenhum de seus problemas. Elas não creem que as pessoas precisem de Deus como fonte de sentido e propósito, para que tenham uma estrutura moral sólida, para que aspirem ao que é elevado e o alcancem ou simplesmente para que desfrutem uma vida plena e feliz.
Quando Paulo pregou o evangelho às elites imperiais, ele classificou sua mensagem de verdadeira e racional. Contudo, os ouvintes acharam que ele estava fora de si. Hoje também, o que os cristãos consideram verdadeiro e racional agora parece ser loucura pura e simples a um número cada vez maior de pessoas.
MUDANÇA OU DESAFIO?
Andy Stanley diz que a pregação expositiva da Bíblia funcionou numa época em que nossa sociedade estava de acordo em relação à importância e à verdade da Escritura. Ele acredita que agora ela não funciona mais. Em vez de começar com a Bíblia e terminar com a aplicação prática ? como no sermão tradicional ?, deveríamos começar com uma necessidade humana atual ou com uma questão contemporânea e então introduzir a Bíblia como resposta e solução. Stanley pergunta: ?A que extremo você está disposto a chegar para criar um sistema de comunicação que fale ao coração de seu público?
Para um ponto de vista contrário, podemos recorrer a P. T. Forsyth, ministro e teólogo congregacionalista escocês da virada do século 19 para o século 20. Ele diz que quando, na história, a igreja estava no auge, ?ela não guiava o mundo, tampouco o repercutia; ela o confrontava?.8 ?O pregador cristão não é o sucessor do orador grego, e sim do profeta hebreu?.
Não há necessidade, portanto, de contrapor os objetivos da exposição bíblica aos de mudança de vida. De igual modo, as duas posições, ?adaptação à cultura? e ?confrontação cultural?, não são mutuamente excludentes como parecem ser.
João, autor do Evangelho, se apropriou do termo pagão logos ? uma palavra filosófica e culturalmente carregada naquela sociedade. Os filósofos gregos acreditavam que o termo se referia à ordem cósmica por trás do mundo material. João a usou para dizer que Jesus Cristo é o poder e o sentido por trás do cosmo. Foi uma estratégia retórica arrojada que preencheu um conceito cultural existente com um significado novo, ainda que preservando suas antigas associações para direcionar as pessoas ao evangelho.12
Não teria sido melhor para João manter-se afastado das categorias culturais gregas já comprometidas e dizer simplesmente, em vez disso, ?Jesus é o Filho de Deus??. A resposta é que, ao se apropriar dos termos usados pelos gregos, o autor do Evangelho tocava dessa maneira em suas aspirações mais profundas. João estava dizendo a respeito das aspirações culturais deles: ?Sim, sim, mas não, mas sim?. Sim, os cristãos concordam que a história não é aleatória e que o mundo não é sem sentido; há um logos, um propósito e uma ordem por trás de tudo. E, sim, se você se alinhar a essa ordem, viverá bem. Mas não. Não é algo que você pode encontrar através do raciocínio filosófico, porque não é uma ?coisa? de modo algum; é um ele. Jesus Cristo é o Deus criador que veio em carne. Por fim, mas sim. É possível ter um sentido supremo na vida. Aquilo que você busca apaixonadamente está nele, e seus desejos podem ser plenamente satisfeitos se você entrar num relacionamento de reconciliação com aquele que o criou e que governa o universo.
João não disse simplesmente aos filósofos pagãos que estavam completamente errados e precisavam acreditar na Bíblia em vez de acreditar naquilo em que já criam. Em lugar disso, primeiro lhes mostrou que algumas de suas intuições sobre o universo estavam corretas ? que ele não era aleatório nem governava a si mesmo, mas era guiado por um propósito sobrenatural que precisava ser descoberto. Em segundo lugar, e essa é a parte ?mas não, mas sim? de seu discurso, ele lhes mostrou que a realidade por trás dessa aspiração residia unicamente em Cristo.
Os comunicadores da igreja primitiva não buscavam simplesmente responder às indagações da cultura, porque, quando isso é tudo o que se faz, essas questões dão o tom e definem as fronteiras do que é importante e do que não é. Contudo, embora não tenham permitido que sua pauta fosse cooptada, não ignoraram e não condenaram o vocabulário e os conceitos da cultura.
CONTEXTUALIZAÇÃO
Paulo, em seu discurso em Atenas, por exemplo, descreve Deus em termos que muitos pagãos podiam aceitar (At 17.22,23,24-28).17 Paulo cita autoridades respeitadas pelos seus ouvintes. É claro que ele cita a Bíblia quando se dirige aos judeus, aos gentios ?tementes a Deus? ou aos convertidos ao judaísmo. Quando, porém, se dirige aos filósofos no Areópago, cita Aratus, um autor pagão (At 17.28).
Paulo sempre escolhe ?elementos de contato? ? pontos reais de concordância e de afirmação nas preocupações, esperanças e necessidades de seu público.18 Em Atenas, ele escolhe cinco concepções a respeito do Deus da Bíblia com as quais os filósofos estoicos presentes estavam de acordo e prossegue a partir delas.
Há muitos exemplos excelentes de contextualização na história da pregação cristã. Um exemplo instrutivo é o do teólogo americano Jonathan Edwards. Em 1751, ele se mudou de Nothampton para Stockbridge, que ainda ficava em Massachusetts, porém numa região mais distante, próximo ao limite do país e ali ele pregou aos índios americanos da tribo dos moicanos e dos mohawks.
Ele recorreu a um novo conjunto de imagens e de metáforas que se adaptavam melhor ao seu público.
Ele adotou uma abordagem mais indutiva, que começava com questionamentos e reunia as ideias em uma conclusão. Edwards levou claramente em conta que seus ouvintes haviam sofrido uma opressão enorme e haviam sido maltratados. Suas mensagens desse período adquiriam um tom de conforto e consolo mais frequente do que em seus sermões anteriores.
Contudo, embora inevitável, a contextualização está repleta de perigos, e por ambas as direções. Se, por um lado, você contextualiza demais e compromete o conteúdo real do evangelho, atrairá uma multidão, mas ninguém será transformado. Isso é simplesmente negligenciar o dever de pregador. Por outro lado, se faltar contextualização, de tal maneira que sua comunicação do evangelho soe desnecessariamente estranha e distante, em termos culturais, de seu público, você verá que ninguém estará disposto a ouvi-lo.
Vamos analisar seis boas práticas para pregar a uma cultura e alcançá-la:
1. USE UM VOCABULÁRIO ACESSÍVEL OU BEM EXPLICADO: Você não deve usar termos teológicos sem explicação, como ?hermenêutica?, ?escatológico?, ?aliança?, ?reino? ou até mesmo ?teológico? reiteradas vezes. Se o fizer, não apenas os que são estranhos à fé se sentirão confusos, mas também os cristãos, intuitivamente, saberão que não devem levar seus amigos menos iniciados para ouvi-lo. Se o termo em questão for muito importante, explique-o de forma metódica até chegar a uma definição acessível que você possa citar com frequência. Evite o jargão subcultural evangélico e termos desnecessariamente arcaicos, sentimentais ou não prontamente compreensíveis para quem vem de fora. Alguns termos como ?morno?, ?guerra espiritual?, ?apostasia?, ?ver frutos?, ?abrir portas?, ?andar com o Senhor? e o desgastado ?bênção? têm um pano de fundo bíblico, mas podem se tornar batidos. Também nos habituamos a um tipo de linguagem enfastiante e estilizada durante a oração, com a repetição de frases batidas do tipo ?Porque o Senhor me libertou disso ou daquilo?; ?É verdade, Senhor?; ?Ó Deus Pai?, as quais podem migrar para a fala e a oração públicas. Há também uma versão do discurso evangélico entre os mais jovens, como, por exemplo, ?O pregador entregou com unção a Palavra? e ?Foi de Deus?, e um uso abusivo de termos como ?paixão? e ?apaixonado?, da mesma maneira que os mais antigos usavam a palavra ?bênção?. Uma linguagem desse tipo é usada como marcação de limites. É uma forma de dizer aos outros que você pertence à tribo, ao passo que eles não. A linguagem de quem está dentro também é, com frequência, um potenciador da hipocrisia, já que oferece um atalho para que o indivíduo pareça espiritual sem realmente ter um coração cheio de amor e de prazer.
1. RECORRA A AUTORIDADES RESPEITADASPARA REFORÇAR SUAS TESES: Se você estiver pregando ou falando a pessoas que têm fortes dúvidas sobre a Bíblia, você deve reforçar os conceitos bíblicos que está defendendo usando material de apoio de fontes nas quais seus ouvintes confiam. É bem conhecido o episódio em que Paulo faz isso, em Atos 17.28, quando ele cita o autor pagão Aratus. Não há garantia alguma de que você conseguirá persuadir os céticos de sua audiência, mas essas coisas farão com que eles não se desliguem imediatamente daquilo que você diz, ouvindo-o por muito mais tempo. Com frequência, o resultado disso é que respeitarão mais a sabedoria ? e, por fim, a autoridade ? da Bíblia.
1. DEMONSTRE COMPREENSÃO A RESPEITO DAS DÚVIDAS E OBJEÇÕES: O pregador cristão deve ser um crítico da descrença. Contudo, não há virtude alguma em ser insensível. Será que os que estão em dúvida parecem sentir que você é indiferente, autoritário ou que não leva a sério o que eles pensam, ou eles ficam surpresos, até mesmo chocados, com a forma precisa e imparcial com que você descreve as dificuldades deles em relação ao cristianismo? Eles acham que você consegue expressar o ceticismo deles tão bem quanto, ou até melhor, do que eles mesmos? O comunicador cristão deve mostrar que se lembra (ou pelo menos compreende) muito bem como é não crer, mas ao mesmo tempo asseverando que é possível chegar a uma segurança de fato da realidade e do amor de Deus. Ele deve fazê-lo expressando essas dúvidas e objeções com apreciação e respeito, de forma coerente, mostrando que ouve seu público com seriedade. Isso é algo que não pode ser falseado. Só é possível depois de passar muito tempo face a face com aqueles que não creem, além de ler as melhores críticas ao cristianismo.
1. CONFIRME, A FIM DE DESAFIAR AS NARRATIVAS CULTURAIS BÁSICAS: Sua pregação deve estar direcionada para as objeções específicas que comumente são levantadas contra o cristianismo. Contudo, ainda mais decisivo do que lidar com essas coisas é interagir com as narrativas culturais fundamentais do seu tempo. São geralmente expressas em slogans ou ?truísmos? epigramáticos proferidos para encerrar discussões ? acredita-se que estejam além de qualquer argumentação. ?Todos têm o direito à opinião própria? ou ?Seja você mesmo? são dois dos muitos exemplos disso. Essas narrativas, na verdade, são uma oportunidade para o comunicador cristão, uma vez que a maior parte das pessoas, inclusive indivíduos secularizados, nunca refletiram muito sobre suas crenças, tampouco procuraram fundamentá-las. Cada uma das narrativas aspira, em parte, a algo bom, e devemos genuinamente apreciá-las por isso. As pessoas querem, com razão, ser livres; elas querem justiça; querem uma sociedade verdadeiramente aberta e pluralista. Contudo, temos de mostrar a elas que somente em Cristo essas aspirações poderão ser alcançadas adequadamente. ?Em vez de descartar totalmente essa cultura, ou de apenas endossá-la tal como ela é?.
1. FAÇA PROPOSIÇÕES BASEADAS NO EVANGELHO QUE ATINJAM OS PONTOS DE PRESSÃO DA CULTURA: Para completar o processo da nossa pregação, temos de demonstrar de forma bem específica nessa narrativa de que modo o cristianismo oferece recursos muito mais poderosos ? não apenas para explicar, mas também para tornar realidade determinada aspiração ou para lidar com certa questão. Somente em Cristo um enredo cultural poderá ter um final feliz. Para os que buscam a sabedoria, Cristo é a verdadeira sabedoria de Deus. Para os que buscam poder, ele é o verdadeiro poder de Deus. O evangelho oferece muitas coisas ? perdão, comunhão, sentido, contentamento, identidade, liberdade, esperança, vocação. O comunicador cristão precisa refletir sobre como organizar e articular essas ofertas magníficas para aplicar frontalmente sua força nos ?pontos de pressão? da cultura.
1. CHAME PARA UMA MOTIVAÇÃO NO EVANGELHO: É um erro pensar que crentes fiéis do nosso tempo não sejam profundamente moldados pelas narrativas da modernidade. Não há dúvida de que somos. Portanto, quando você revela essas narrativas e interage com elas no curso normal de pregação da Palavra, você ajuda seu público cristão a ver em que ponto ele talvez esteja sendo mais influenciado pela sociedade do que pela Escritura. E isso também lhe proporciona meios importantes de comunicar sua fé aos outros. Essa é uma importante maneira de edificar os crentes. Quando o pregador resolve os problemas dos cristãos com o evangelho ? não conclamando a que se esforcem mais, mas conduzindo-os a uma fé mais profunda na salvação de Cristo ?, os crentes estarão sendo edificados e, ao mesmo tempo, os não crentes ouvirão o evangelho.
CAPÍTULO 5: A PREGAÇÃO E A MENTE MODERNA (TARDIA)
A única pregação atual para todas as épocas é a pregação da eternidade, que nos é disponibilizada apenas pela Bíblia ? a eternidade do amor santo, da graça e da redenção, a moralidade eterna e imutável da graça salvadora para nosso pecado indelével [?] Que [o pregador] exponha o problema [?] com poder [?] mas que o responda com a resposta final que Cristo deixou [?] Porque ele é a resposta que todos desejam.
? P. T. Forsyth1
No princípio da era moderna ? do século 17 ao 19 ? dizia-se que tínhamos de abandonar toda tradição e toda crença religiosa e chegar à verdade somente pela razão. Foi um deslocamento inédito em direção ao individualismo, a ideia de que toda pessoa tinha dentro de si a capacidade de descobrir a verdade sem o auxílio da sabedoria antiga ou da revelação divina. Em tempos mais antigos, ainda vigorava o pensamento de que haviam absolutos morais e leis naturais a serem seguidas. Mas então, com o pensamento moderno, passou-se a dizer que podíamos descobri-los por conta própria, por meio dos nossos próprios poderes de vigilância exaustiva.
No início dos tempos modernos, a religião ainda era vista como uma coisa boa ? ou, pelo menos, benigna. Havia ainda um entendimento geral de que a sociedade deveria ser erigida sobre normas morais compartilhadas a que as pessoas deveriam se submeter. A religião era um dos elementos que ajudavam as pessoas a viver de acordo com essas normas. Isso mudou. Mark Lilla, professor de Humanidades da Universidade de Colúmbia, disse que, em João 3, quando Jesus diz a Nicodemos que ele tinha de ?nascer de novo?, o que ele ?parece estar dizendo é que Nicodemos precisava se dar conta de sua insuficiência ? era necessário que ele desse as costas à sua vida autônoma, aparentemente feliz, para nascer de novo como um ser humano que compreende sua dependência de algo maior [?] Esse parece um desafio radical à nossa liberdade, e é?.
Nesse sentido, a religião passa a ser quase que a inimiga suprema. É por isso que hoje, para muitos, a fé religiosa parece algo que, de tão inconcebível, beira à loucura.
A mente moderna diz..
Não precisamos de Deus para explicar o mundo que vemos, pois a ciência se encarrega disso para nós. Não precisamos de Deus nem da religião para sermos morais, para amar e para trabalhar por um mundo melhor ou para ter sentido e realização na vida.
O filósofo Charles Taylor chama isso de a ?história de subtração? causada pela secularidade. A ciência e a razão objetiva, segundo o que ele descreve, simplesmente subtraíram Deus da imaginação das pessoas modernas e o que sobrou foi apenas a secularidade.
Não é natural não crer em Deus. Mark Lilla diz que, para a maior parte dos seres humanos, o profundo interesse pelo sobrenatural, pela vida depois da morte, pela transcendência e por Deus ?lhes sobrevém naturalmente ? é a indiferença a essas coisas que tem de ser aprendida?
Para pregar a um indivíduo secularizado, temos de resistir à interpretação que a secularidade tem de si mesma. Secularidade não é simplesmente a ausência de crença. Os cristãos muitas vezes aceitam essa definição e respondem apresentando provas e outras credenciais. Calma lá, diz Taylor e muitos outros. O secularismo é uma teia própria de crenças que deve ser exposta e examinada. É o que faremos agora.
AS NARRATIVAS DE UMA MODERNIDADE TARDIA
Antes do surgimento do cristianismo
O corpo e o mundo material são menos importantes e reais do que o reino das ideias.
Depois do advento do cristianismo no Ocidente
O corpo e a o mundo material são bons. É importante melhorá-los. A ciência é possível.
Antes: A história é cíclica e não tem direção.
Depois: A história progride.
Antes: O indivíduo não é importante. Só o clã e a tribo têm valor.
Depois: Todos os indivíduos são importantes, têm dignidade e merecem nossa ajuda e respeito.
Antes: As escolhas humanas não têm importância; nosso destino está traçado.
Depois: As escolhas humanas são importantes e somos responsáveis por nossas atitudes.
Antes: As emoções e sentimentos não devem ser explorados, apenas superados.
Depois: As emoções e sentimentos são bons e importantes. Eles devem ser entendidos e direcionados.
O motivo básico da mudança, de acordo com vários estudiosos, se deve ao fato de que antes do cristianismo praticamente todas as culturas tinham uma visão essencialmente impessoal do universo. Os gregos acreditavam que o logos por detrás do universo consistia em um princípio racional e impessoal. As culturas orientais acreditavam que toda personalidade individual era uma ilusão temporária. O cristianismo, em forte contraste com isso, via o universo como um ato amoroso e criativo de um Deus tripessoal, que criou as pessoas para se relacionarem pessoalmente com ele, como seres individuais que duram para sempre. Todas as ideias cristãs que aqui foram apresentadas fluíam naturalmente da ideia de que o propósito de todas as coisas era a ?comunhão? com o Deus pessoal.
1. A narrativa da racionalidade.
Os filósofos gregos viam o mundo material (inclusive o corpo) como algo subordinado, sem importância e irreal, mas o cristianismo o via como a boa criação de Deus, com uma realidade confiável e objetiva própria. Muitos admitem que essa visão cristã de um mundo criado por um ser racional e pessoal foi um fundamento importante para o desenvolvimento da ciência moderna.
Mas para a modernidade tardia, tudo tem uma causa e uma explicação física, deixando de lado o poder de Cristo.
Essa visão constitui a base para a poderosa cultura atual do consumo e da tecnologia, segundo a qual nossos problemas serão submetidos a soluções tecnológicas se dedicarmos tempo, dinheiro e esforços.
A psicologia e a medicina nos ajudarão a ajustar e a vencer os problemas físicos e emocionais ? não precisaremos de recursos espirituais para isso. A sociologia nos ajudará a criar uma sociedade justa ? não precisaremos da virtude dada por Deus para isso. A tecnologia descobrirá soluções para a fome, o envelhecimento, a pobreza e os desastres ambientais. Sem a religião, homens e mulheres terão vidas tão sadias e justas (se não melhores) quanto terão com ela; portanto, a religião deve se restringir à esfera do privado.
2. A narrativa da história.
Para os antigos, a história era cíclica e não tinha fim, ao passo que, para os cristãos, ela estava sob o controle de Deus, que a conduzia com um propósito pelas trevas e pela luz em direção a um clímax grandioso e irreversível. A modernidade tardia aproveitou a ideia de progresso histórico (daí o termo ?progressivo?), mas afastou-a de qualquer ideia de controle divino. Agora, acredita-se que a história esteja automaticamente progredindo a cada nova etapa.
3. A narrativa da sociedade.
Para os antigos, o indivíduo era menos importante do que a tribo ou o clã e jamais lhes passou pela cabeça que um indivíduo de qualquer raça, classe ou status merecesse ajuda e respeito simplesmente pelo fato ser visto como um ser humano. O cristianismo, porém, via as pessoas como seres criados à imagem de Deus e, portanto, possuidoras de uma dignidade inviolável.
O secularismo ocidental foi além e visa ?libertar? todos os indivíduos para que vivam como queiram, sem impedimentos, independentemente de qualquer relação com a comunidade, contanto que não prejudiquem a liberdade do outro de viver como queira. A escolha se torna o valor sagrado, e a discriminação o único mal moral.
4. A narrativa da moralidade ou da justiça.
Os antigos acreditavam que nosso destino estava essencialmente traçado. A ordem por trás do universo era inexorável. Cabia-nos aprender a nos submetermos a ela de maneira estoica e corajosa, ou ser esmagados em suas pedras.
O cristianismo via universo não como algo cuja ordem era impessoal, mas como algo criado por um Deus pessoal que criou os seres humanos como agentes morais responsáveis e que se importava com a forma como nos comportávamos. O secularismo da modernidade tardia é fortemente moral sob muitos aspectos. Ele é mais comprometido com a justiça social, com a benevolência universal e com os direitos humanos do que qualquer civilização jamais o foi. Contudo, insiste que, ao buscarmos esses objetivos, não significa que estejamos nos alinhando às normas morais de Deus, pois somos nós que ditamos as normas.
5. A narrativa da identidade.
As culturas antigas (e algumas culturas tradicionais da atualidade) acreditavam que os fortes sentimentos individuais e o interesse próprio deveriam ser suprimidos em favor do cumprimento do dever para com a família e para com a tribo.
O cristianismo atribuiu valor muito maior às emoções e às intuições, e não concedeu à família e à sociedade esse controle absoluto sobre os indivíduos. Ele ensinou que nossos sentimentos deveriam ser avaliados, e nosso amor e devoção mais elevados, dirigidos a Deus. O secularismo ocidental, porém, inverteu essa abordagem. Nossa identidade agora não se revela exteriormente (em nossos deveres ou papéis na sociedade), mas interiormente apenas, em nossos desejos e sonhos.
Temos de ?ser nós mesmos?, sejam quais forem as expectativas sociais. A principal narrativa heroica de nossa sociedade é a do indivíduo que se ergue e é verdadeiro consigo mesmo à revelia da sociedade.
Essas cinco narrativas funcionam como verdades autoevidentes, geralmente expressas por meio de slogans simples que parecem não ter necessidade de justificação depois de declarados: ?Guarde suas opiniões religiosas para você?; ?Sou livre para fazer o que quiser, contanto que não prejudique ninguém?;
INTERAGINDO COM A NARRATIVA DA IDENTIDADE: O EU SOBERANO
A nova narrativa da modernidade tardia, porém, vai além da mera compreensão e do redirecionamento de nossas paixões: ela as entroniza. A essência dessa narrativa se deixa captar pelas palavras da música ?Let it go? [Deixa rolar] do filme Frozen, da Disney. A música é cantada por uma personagem decidida a não ser mais ?a garota boazinha? que sua família e a sociedade queriam que ela fosse. Em vez disso, ela ?deixava rolar? e expressava o que vinha segurando dentro de si.27 ?Não há certo ou errado, não há regras? para ela. Esse é um bom exemplo do individualismo expressivo descrito por Bellah. Não se entende a identidade, como nas sociedades tradicionais, pela sublimação de nossos desejos individuais pelo bem da família e do povo. Em vez disso, só nos tornamos nós mesmos afirmando nossos desejos particulares contra a sociedade, exprimindo nossos sentimentos e realizando nossos sonhos a despeito do que os outros dizem.
Fazer do eu soberano uma filosofia de vida acarreta inúmeros problemas muito sérios. Em primeiro lugar, parte-se do princípio de que sabemos o que queremos ? que nossos desejos interiores são coerentes e harmoniosos. A modernidade nos diz que devemos descobrir nossos desejos mais profundos e realizá-los; no entanto, nossos desejos mais profundos muitas vezes se contradizem. O desejo por uma carreira de sucesso muitas vezes entra em conflito com o desejo por certo relacionamento. Além disso, nossos sentimentos mudam com frequência. Portanto, uma identidade que se baseie em nossos sentimentos será instável e incoerente.
Imagine um guerreiro anglo-saxão na Grã-Bretanha de 800 d.C. Ele tem dois impulsos e sentimentos interiores muito fortes. Um deles é de agressão. Ele adora esmagar e matar pessoas quando elas lhe faltam com o respeito. Vivendo em uma cultura de vergonha e honra e de ética bélica, ele se identificará com esse sentimento. Dirá a si mesmo: ?Este sou eu! É assim que eu sou! Vou expressar isso?. O outro sentimento que ele tem é de atração pelo mesmo sexo. Nesse sentido, ele dirá: ?Esse não sou eu. Vou controlar e suprimir esse impulso?. Imagine agora um jovem que esteja caminhando por Manhattan atualmente. Ele tem os mesmos dois impulsos, ambos igualmente fortes, igualmente difíceis de controlar. O que ele dirá? No tocante à agressão, ele pensará: ?Não quero ser assim? e buscará libertação na terapia e em programas de gestão da ira. Ele refletirá, porém, sobre seu desejo sexual e chegará à seguinte conclusão: ?Este é quem eu sou?.
Onde foi que nosso guerreiro anglo-saxão e nosso homem moderno de Manhattan foram buscar suas matrizes? Em suas culturas, comunidades e histórias de heróis. Na verdade, eles não estão simplesmente ?escolhendo ser eles mesmos?. Estão filtrando seus sentimentos, descartando alguns e abraçando outros. Eles estão escolhendo ser o eu que sua cultura lhes diz que podem ser. No fim das contas, é impossível que haja uma identidade baseada de maneira independente em nossos sentimentos interiores.
É aí que se vê como a proposta do cristianismo é libertadora. Em termos bíblicos, somos seres socialmente interdependentes e temos valor porque fomos feitos à imagem do Deus triúno ? a imago dei. Isso significa que nosso valor é a um só tempo inerente (decorre simplesmente de sermos humanos) e contingente (nos faz lembrar do quanto somos dependentes de Deus). É uma identidade que não é conquistada, mas recebida. Da mesma forma, no evangelho, na obra de Cristo, essa identidade é batizada em algo ainda maior. Não se pode alcançá-la através da realização de papéis sociais ou pelo cumprimento de padrões religiosos e morais, ou pelo sucesso e conquista de status. Trata-se do reconhecimento supremo ? a aprovação de Deus conforme ele nos vê em Jesus Cristo. É ?ser encontrado nele, não tendo um registro próprio que venha da realização e do esforço pessoais, mas por meio da fé em Cristo ? a justiça que vem de Deus pela fé? (Fp 3.9, paráfrase minha).
A identidade cristã cria então uma humildade profunda, ao mesmo tempo que confere um amor infinito e um sentido de valor a nós. Desse modo, a identidade cristã tanto critica quanto realiza o desejo moderno por identidade.
Há outros temas bíblicos que também estão relacionados com essa narrativa. Deus nos atribui seu nome (Is 43.7; 2Cr 7.14; Mt 28.19). A questão da identidade não é ?quem sou eu??, e sim ?de quem sou eu??.
INTERAGINDO COM A NARRATIVA DA SOCIEDADE: LIBERDADE NEGATIVA ABSOLUTA
Um indivíduo moderno tardio, controlado tanto pela narrativa da liberdade quanto da identidade, quer um cônjuge que ?me aceite como sou e não exija que eu mude nem que eu sacrifique nenhum dos meus desejos, interesses e sonhos principais?. Esse tipo de casamento é ficção. Não existe.41
Essa é a principal maneira de interagir com a narrativa de liberdade em sua pregação. Mostre que no plano humano o amor não cresce, e nem mesmo sobrevive, na companhia da autoabsorção do entendimento moderno tardio de liberdade e escolha. Isso ficará claro quando você pregar sobre o relacionamento amoroso em textos como 1Coríntios 13 e Colossenses 3. Se podemos ter essa experiência no plano humano, tanto mais a teremos em nosso relacionamento com Deus. No casamento, pode-se dizer, perdemos nossa independência para ganhar uma nova liberdade. Portanto, se nos entregarmos a Deus, nosso Verdadeiro Amor, seremos mais livres do que podemos imaginar. Seremos livres de temores, insegurança e vergonha. Seremos livres para perdoar, amar os outros, enfrentar o sofrimento de um modo que não poderíamos antes.
Até mesmo o tema do reino de Deus, quando pregado de modo adequado e pleno, propõe desafios objetivos ao desejo de liberdade da modernidade tardia, bem como o realiza. Vemos na vida cotidiana como certas disciplinas ? ?perdas? de liberdade como as decorrentes de exercícios e dietas ? levam a outros tipos de ganho de liberdade. Vemos também como funcionários ou os membros de uma equipe, quando se submetem à liderança de um grande diretor executivo ou a um técnico extraordinário, realizam seu potencial e prosperam. Submeter-se às regras certas e ao líder certo pode redundar em todo tipo de liberdade fantástica. Se entendermos que esse é o caso, quanto mais libertador será nos submetermos ao verdadeiro rei da nossa alma? A Bíblia diz que, quando Deus voltar para julgar a terra, até mesmo a ordem criada será libertada da decadência (Sl 96.11-13; Rm 8.20-23).
INTERAGINDO COM A NARRATIVA DA MORALIDADE/JUSTIÇA: A MORALIDADE QUE AUTORIZA A SI MESMA
O indivíduo secular se irrita ao ser chamado de ?relativista? pelos cristãos, e está muito certo em reagir assim. E