Bbortolotti 22/06/2017
Segredos e mistérios
"..é importante aprender a distinguir entre mistérios e segredos. Mistérios precedem a humanidade, estão à nossa volta e nos impelem a investigar, a descobrir e a nos maravilhar. Já os segredos são obra da humanidade, uma forma dissimulada e muitas vezes insidiosa de adquirir, manter ou impor o poder. Nunca confunda a busca pelos primeiros com a manipulação exercida pelo segundo".
No trecho acima destacado, o personagem "Arquivista" apresenta uma bela reflexão que talvez sintetize o brilho da série dos anos 1990. Para quem, como eu, é fascinado pelo universo criado por Lynch/Frost, o livro "A História Secreta de Twin Peaks" pode ser devorado em questão de horas. Além de realizar um histórico sobre a cidade e alguns dos seus principais cidadãos e cidadãs, o livro é um entreato entre a segunda e a terceira temporada e revela importantes dados sobre o enredo da nova temporada, bem mais intrigante do que a anterior, há de se ressaltar.
O livro, contudo, acaba ficando no campo do "segredo" e não do "mistério", seguindo a distinção realizada acima pelo(a) "Arquivista". Ainda que a obra deixe espaço para o "mistério", Frost não soube explorar, ao meu ver, as potencialidades da linguagem literária. Prendeu-se exclusivamente ao enredo e caiu em diversos lugares comuns da teoria da conspiração para falar sobre os mistérios de Twin Peaks. O formato de dossiê do livro é aparentemente interessante, com a história sendo desenvolvida a partir de recortes de jornais, trechos de cartas, entrevistas, diários, fotografias, revistas, relatórios, além do próprio comentário do (a) arquivista. Mas por vezes parece excessivamente forçado, como se todas as informações do dossiê fossem perfeitamente adequadas à trama e costuradas pelo(a) Arquivista.
Para quem acompanha a filmografia de Lynch sabe do seu trabalho impecável com a linguagem audiovisual. Uma montagem não-linear das narrativas, personagens, diálogos, enquadramentos pouco convencionais, cenários e efeitos visuais surreais, desenho sonoro que remete ao onírico, dentre outras tantas características que tornam seus filmes verdadeiros "mistérios" que não pretendem explicar nada com o seu enredo. Cabe aos espectadores a incumbência dessa tarefa. E todos esses elementos estão presentes na série Twin Peaks. Em entrevista, Lynch assumiu que deixou de se dedicar tanto à série quando o obrigaram a revelar quem era o assassino de Laura Palmer. A segunda temporada desandou a partir disso, sendo retomada ao melhor estilo Lynch nos dois últimos episódios e agora com a temporada nova.
Ainda que Frost seja um dos autores da série, a impressão que tive após ler "A História Secreta..." é de que sem o incrível talento com a linguagem audiovisual de David Lynch a série não teria a mesma potência. Poderia até fazer bastante sucesso como outras séries de suspense como Lost ou Stranger Things, por exemplo. Após ler o livro, chego à conclusão que Frost não consegue fazer com a literatura o que Lynch faz com o audiovisual. A literatura norte-americana está cheia de grandes exemplos de autores que sabem construir uma atmosfera de mistério a partir da escrita: Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft e Stephen King, para ficar nos mais famosos. Frost parece não ter aprendido com eles, preferiu uma trama convencional na roupagem estilística de um dossiê, cheio de lugares comuns. Ficou no campo dos segredos, na acepção do seu personagem "Arquivista". Ainda bem que quem dirige a série é o David Lynch, esse sim um mestre audiovisual dos mistérios.