Paulo 04/06/2021
Escrito em 1974 pela brilhante e premiada Ursula K. Le Guin, Os Despossuídos é uma ficção científica política sobre dois planetas gêmeos separados por décadas de desconfiança, e um homem que arriscará tudo para reuni-los. Urras é um mundo de abundantes recursos dividido em vários estados-nação. Anarres, por sua vez, é um planeta inóspito e gêmeo de Urras, colonizado por fugitivos, que fizeram dele uma utopia anarquista, prezando simultaneamente pela coletividade e pela liberdade. Essa ilusão de sociedade perfeita é quebrada quando Shevek, um jovem físico brilhante de Anarres, descobre a Teoria da Simultaneidade, uma ideia que pode acabar com o isolamento de seu planeta e, ao mesmo tempo, avivar as guerras do planeta vizinho. Assim, o brilhante cientista decide contrariar seus compatriotas e viajar até Urras para realizar suas pesquisas e, ao mesmo tempo, fomentar a reaproximação dos dois planetas.
Para contar esta história, a narrativa se desenvolve em duas linhas temporais entrelaçadas: os capítulos ímpares são dedicados às experiências e ao choque cultural de Shevek em Urras (onde a autora demonstra seu imenso talento como observadora de nossa própria sociedade; colocando os valores Shevek em conflito com os valores de nossa própria sociedade capitalista), e os capítulos pares, em Anarres, nos contando a história pregressa de Shevek á sua chegada em Urras, da sua infância até a partida. Infelizmente, a obra não consegue criar empatia entre o leitor e o protagonista. Embora a construção de Shevek e sua jornada de autodescoberta tenha sido impecável, o físico não é lá um personagem muito cativante.
A narrativa é lenta e cadenciada, uma vez que não há uma história de fundo maior, acontecimentos instigantes ou mistérios durante a progressão da história, há, apenas, a jornada de descobertas de um protagonista que não é muito cativante. Soma-se a isso algumas passagens mais lentas, com maior nível de descrições, e em alguns momentos a narrativa pode ficar um pouco arrastada. Portanto, tenha um pouco de paciência. Mas ao mesmo tempo, ‘Os Despossuídos’ não é uma leitura difícil. A escrita de Ursula é bem fluída, e a autora consegue passar todas as mensagens e reflexões que deseja de uma maneira muito simples de entender.
Agora, há de se ressaltar que a riqueza de detalhes das duas sociedades é incrivelmente verossímil, e este é o ponto alto desta obra. Para escrever este livro, a autora mergulhou no assunto, estudando muito sobre utopias, pacifismo, resistências não violentas, e as escritas de anarquistas como Goodman e Kropotkin. Assim, ‘Os Despossuídos’ é um excelente “ensaio” antropológico de culturas que não existiram, especialmente no que diz respeito à sociedade anárquica de Anarres. Mas definitivamente o mais legal de sua abordagem em ‘Os Despossuídos’ é que apesar de existirem diversas distopias que exploram regimes autoritários, não é comum vermos obras que abordam de maneira tão verossímil uma sociedade baseada no anarquismo, e porque não no verdadeiro ideal comunista. E além de explorar como uma sociedade anárquica funcionaria na prática, e tecer críticas aos sistemas políticos de nosso mundo e a polarizações políticas, através de sua narrativa Ursula levanta questionamentos sobre existencialismo, poder e sistemas políticos, e aborda questões de fundo sociológico, como liberdade, desigualdade, individual versus coletivo. E apesar de ser um livro denso, a autora faz isso de uma forma muito simples de entendermos. E tudo isso sem supervalorizar Anarres, não caindo na tentação de criticar de maneira parcial um mundo capitalista em que a desigualdade social é regra. Ursula postula, em sua obra, que não existe sociedade humana ideal. Nem as nações de Urras, capitalistas ou comunistas, nem o comunitarismo sindicalista de Anarres. Todos os modelos são imperfeitos pelo fato de serem humanos e, portanto, caracterizados por conflitos e polarizações, por disputas de poder, por tentativas de hierarquizar e subjugar.
Dito isso, é impossível não recomendar ‘Os Despossuídos’. Pode não ser das leituras mais fáceis, e a ausência de uma trama que nos instigue às vezes arrasta a leitura, porém, uma vez que você entra de cabeça na proposta narrativa, é impossível parar. Definitivamente é um dos melhores livros que já tive o prazer de ler. ‘Os Despossuídos’ tem um enorme potencial de mexer com a sua cabeça e com o seu senso crítico, e garanto que você não será o mesmo depois de fechar estas páginas pela última vez.