jmrainho 10/05/2014
Por uma outra globalização
Editora Record, 2001
Milton Santos (1926-2001) foi um dos maiores geógrafos brasileiros. Foi professor na USP e na França, onde se formou.
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Livro indispensável para entender de fato a Globalização e suas implicações nefastas na economia e na sociedade do bem estar. Milton Santos foi um pensador independente, não filiado a nenhum partido nem submisso aos interesses dos tubarões. Mas não foi um pessimista. Fala da globalização como um conceito de fábula criado pelo mercado; a globalização como prática exploratória do ser humano como vemos e sentimos na pele ou na pelo dos outros;e, o que é mais importante, a globalização como possibilidade futura de um mundo melhor, com a conscientizaçãos dos atores sociais, principalmente, partindo de baixo para cima na hierarquia social. È o que Milton Santos chama de mutação filosófica do homem. Quem viver verá.
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TRECHOS
Acreditamos na força das ideias - para o bem e para o mal - nesta fase da história, em filigrama aparecerá como constante o papel do intelectual no mundo de hoje, isto é, o papel do pensamento livre.
O mundo como fábula, como perversidade como possibilidade.
Fala-se, por exemplo,em ALDEIA GLOBAL para fazer crer que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas. Na verdade, as diferenças locais são aprofundadas.
Fala-se, igualmente, na morte do Estado, mas o que estamos vendo é o seu fortalecimento par atender aos reclamos da finança e de outros interesses internacionais, em detrimento dos cuidados com as populações cuja vida se torna mais difícil.
A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas.
Todavia, por uma outra globalização.
Se acrescente, graças aos progressos da informação, a mistura de filosofias, em detrimento do racionalismo europeu. Trata-se da existência de uma sociodiversidade, historicamente muito mais significativa que a própria biodiversidade.
Há dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das técnicas e o estado da política.
Quando um determinado ator não tem as condições para mobilizar as técnicas consideradas mais avançadas, torna-se, por isso mesmo, um ator de menor importância no período atual.
Havia, com o imperialismo, diversos motores, cada qual com sua força e alcance próprios - o motor francês, o motor inglês, o motor alemão, o motor português, o belga, o espanhol, etc.
Hoje, haveria um motor único, que é, exatamente, a mencionada mais-valia universal.As que resistem são aquelas que obtêm a mais-valia maior, permitindo-se continuar a proceder e a competir.
Mundialização da técnica e mundialização da mais-valia
Deixamos o mundo da competição e entremos no mundo da competitividade.
O computador é o instrumento de medida e, ao mesmo tempo, o controlador do uso do tempo.
Neste período histórico, a crise é estrutural. Por isso, quando se buscam soluções não estruturais, o resultado é a geração de mais crise.
Tirania do dinheiro e tirania da informação são os pilares da produção da história atual do capitalismo globalizado.
UMA GLOBALIZAÇÃO PERVERSA
A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mas facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instala.A perversidade sistêmica é um dos corolários.
As pessoas sentem-se desamparadas, o que também constitui uma incitação a que adotem, em seus comportamentos ordinários, práticas que alguns decênios atrás eram moralmente condenadas. Há um verdadeiro retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade.
O que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde.
A informação atual tem dois rostos, um pelo qual ela busca construir, e um outro, pelo qual ela busca convencer.
Há uma relação carnal entre o mundo da produção de notícia e o mundo da produção das coisas e das normas.
Falsificam-se os eventos, já que não é propriamente o fato o que a mídia dá, mas uma interpretação, isto é, a notícia. Pierre Nora, em um bonito texto, "O Retorno do Fato", lembra que, na aldeia, o testemunho das pessoas que veiculam o que aconteceu pode ser cotejado com o testemunho do vizinho. Numa sociedade complexa como a nossa, somente vamos saber o que houve na rua ao lado dois dias depois, mediante uma interpretação....
É frequentemente mais fácil comunicar com quem está longe do que com o vizinho. Quando essa comunicação se faz, na realidade, ela se dá com a intermediação de objetos. A informação sobre o que acontece não vem da interação entre as pessoas, mas do que é veiculado pela mídia, uma interpretação interessada, senão interesseira, dos fatos.
No fundo, o chamado Produto Nacional Bruto é apenas um nome fantasia do que poderíamos chamar de produto global, já que as quantidades que entram nessa contabilidade são aquelas que se referem às operações que caracterizam a própria globalização.
O que sai do país como royalties, inteligência comprada, pagamento de serviços ou remessa de lucros volta como crédito e dívida.
Relação entre finança e produção, o que Marx chamava de loucura especulativa.
A atual globalização aponta-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência imediata, sem que os atores são expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica indispensável ao funcionamento do sistema como um todo.
Para produzir a atual globalização, aponta-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica indispensável ao funcionamento do sistema com um todo.
Meste mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão dos espíritos constituem baluartes do presente estado das coisas.
Agora, a competitividade toma o lugar da competição. A concorrência atual não é mais a velha concorrência, sobretudo porque chega eliminando toda forma de compaixão. A competitividade tem a guerra como norma. Há, a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o para tomar seu lugar.
As cidades brigando uma com as outras, as regiões reclamando soluções particularistas. Também na ordem social e individual são individualismos arrebatadores e possessivos, que acabam por constitui o outro como coisa. Comportamentos que justificam todo desrespeito às pessoas são, afinal, uma das bases da sociabilidade atual.
Também o abandono da noção e do fato da solidariedade.
Uma empresa para manipular a produção, buscava também manipular a opinião via publicidade.Nesse caso, o fato gerador do consumo seria a produção. Mas atualmente, as empresas hegemônicas produzem o consumidor antes mesmo de produzir os produtos.
Todas as coisas do comércio acabam por ter essa composição: publicidade+materialidade; publicidade+serviços, e esse é o caso de tantas mercadorias cuja circulação é fundada numa propaganda insistente e frequentemente enganosa.
Consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo, convidando, também, a esquecer a composição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão.
As chamadas classes superiores, incluindo as classes médias, jamais quiseram ser cidadãs; os pobres jamais puderam ser cidadãos. As classes médias foram condicionadas a apenas querer privilégios e não direitos.
Século XX, o do despotismo da informação.
A crescente sedução pelos números, um uso mágico das estatísticas.
A partir desse quadro pode-se interpretar o que falava Sartre. Instalam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta ao canibalismo, a supressão da solidariedade, acumulando dificuldades para um convívio social saudável e para o exercício da democracia.
O resultado dessa busca - pelo dinheiro - pode levar à acumulação (para alguns) como ao endividamento (para a maioria).
O resultado objetivo é a necessidade, real ou imaginada, de buscar mais dinheiro. As formas pelas quais ele é obtido, sejam quais forem, já se encontram antecipadamente justificadas.
Concorrer e competir não são a mesma coisa. A concorrência pode até ser saudável sempre que a batalha entre agentes, para melhor empreender uma tarefa e obter resultados finais, exige o respeito a certas regras de convivência preestabelecidas ou não. Já a competitividade se funda na invenção de noas armas de uta, num exercício em que a única regra é a conquista da melhor posição. A competitividade é uma espécie de guerra em que vale tudo e, desse modo, sua prática provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência.
A realidade pode ser vista como uma fábrica de perversidades.
No século XX havia mais 600 milhões de pobres do que em 1960, e 1,4 bilhão de pessoas ganham menos de um dólar por dia.
O fato, porém, é que a pobreza, tanto quanto o desemprego agora são considerados como "natural", inerente ao seu próprio processo.
Daí a difusão, também generalizada, de outro subproduto da competitividade, isto é, a corrupção.
Junta-se a isso o processo de conformação da opinião pelas mídias, um dado importante no movimento de alienação trazido com a substituição do debate civilizatório pelo discurso único do mercado.
Reascende egoísmos e é um dos fermentos da quebra da solidariedade entre pessoas, classes e regiões.
Os papéis dominantes, legitimados pela ideologia e pela prática da competitividade, são a mentira, com o nome de segredo de marca; o engodo, com o nome de marketing; a dissimulação e o cinismo, com os nomes de tática e estratégia. É uma situação na qual se produz a glorificação da esperteza, negando a sinceridade, e a glorificação da esperteza, negando a sinceridade, e a glorificação da avareza, negando a generosidade.
A cidadania plena é o dique contra o capital pleno.
Não é que o Estado se ausente ou se torne menor. Ele apenas se omite quanto ao interesse das populações e se torna mais forte, mais ágil, mais presente, ao serviço da economia dominante.
Morte da política
Mas, se o Estado não pode ser solidário e a empresa não pode ser altruísta, a sociedade como um todo não tem quem a valha.
Fora daí, o que se pretende é encontrar formas de proteção a certos pobres e a certos ricos, escolhidos segundo os interesses dos doadores.
Estamos assistindo a não-política, isto é, à política feita pelas empresas, sobretudo as maiores.... Daí a crença de sua indispensabilidade, fator da presente guerra entre lugares e, em muitos casos, de sua atitude de chantagem frente ao poder público, ameaçando ir embora quando não atendidas em seus reclamos.
A pobreza estrutural.
Os pobres não são incluídos nem marginais. São excluídos.
Uma das grandes diferenças do ponto de vista ético é que a pobreza de agora surge, impõe-se e explica-se como algo natural e irreversível.
O papel dos intelectuais.
O terrível é que, nesse mundo de hoje, aumenta o número de letrados e diminui o de intelectuais.
Enquanto o urbano surge, sob muitos aspectos, e com diferentes matizes, como o lugar da resistência, as áreas agrícolas se transformam agora no lugar da vulnerabilidade.
Os fenômenos a que muitos chamam de globalização e outros de pós-modernidade (Renato Ortiz, Mundialização e Cultura, 1994)na verdade constituem, juntos um momento bem demarcado no processo histórico.
Uma boa parcela da humanidade, por desinteresse ou incapacidade, não é mais capaz de obedecer a leis, normas, regras , mandamentos, costumes derivados dessa racionalidade hegemônica. Daí a proliferação de "ilegais", "irregulares", "informais".
Recordemos Sartre, para quem a escassez é que torna a história possível, graças à unidade negativa da multiplicidade concreta dos homens.
Diferença entre pobreza e miséria. A miséria é a privação total, com o aniquilamento, ou quase, da pessoa. A pobreza é uma situação de carência, mas também de luta. Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam. Eles descobrem a cada dia formas inéditas de trabalho e de luta.
Num mundo tão complexo, pode escapar aos pobres o entendimento sistêmico do sistema do mundo. Mas há também a desilusão das demandas não satisfeitas, o exemplo do vizinho que prospera, o cotidiano contraditório.
Os movimentos organizados devem imitar o cotidiano das pessoas, cuja flexibilidade e adaptabilidade lhe asseguram um autêntico pragmatismo existencial e constituem a sua riqueza e fonte principal de veracidade.
A escassez chega às classes médias
Tais dificuldades chegam em um tropel: a educação dos filhos, o cuidado com a saúde, a aquisição ou o aluguel da moradia, a possibilidade de pagar pelo lazer, a falta de garantia no emprego, a deterioração dos salários, a poupança negativa e o crescente endividamento estão levando ao desconforto quanto ao presente e à insegurança quanto ao futuro, tanto o futuro remoto quanto o imediato.
A experiência da escassez, um revelador cotidiano da verdadeira situação de cada pessoa é, desse modo, um dado fundamental da aceleração da tomada de consciência.
A transição em marcha.
A racionalidade é mantida à custa de normas férreas, exclusivas, implacáveis e radicais. Sem obediência cega não há eficácia.
O homem acaba por ser considerado um elemento residual.
A primazia do homem supõe que ele estará colocado no cento das preocupações do mundo.
Num mundo em que fosse abolida a regra da competitividade como padrão essencial de relacionamento, a vontade de ser potência não seria mais um norte para o comportamento dos estados, e a ideia de mercado interno será uma preocupação central.
As mudanças sairão dos países subdesenvolvidos.
A ideia da história, sentido, destino é amesquinhada em nome da obtenção de metas estatísticas, cuja única preocupação é o conformismo frente às determinações do processo atual de globalização.
A dissolução das ideologias
Não há outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado.
É muito difundida a idéia segundo a qual o processo e a forma atuais da globalização seriam irreversíveis.
Para exorcizar esse risco, devemos considerar que o mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir. Não existe mas é empiricamente factível.
Situações como a que agora defrontamos parecem definitivas, mas não são verdades eternas.
A pertinência da utopia
Por isso, é lícito dizer que o futuro são muitos; e resultarão de arranjos diferentes segundo nosso grau de consciência, entre o reino das possibilidades e o reino da vontade.
Não é raro que as regras estabelecidas pelas empresas afetem mais que as regras criadas pelo Estado.
Os sistemas técnicos de que se valem os atuais atores hegemônicos estão sendo utilizados para reduzir o escopo da vida humana sobre o planeta. No entanto, jamais houve na história sistemas tão propícios a facilitar a vida e a proporcionar a felicidade dos homens.
A partir desses efeitos de vizinhança, o indivíduo refortificado pode, num segundo momento, ultrapassar sua busca pelo consumo e entregar-se à busca da cidadania.
A aglomeração de pessoas em espaços reduzidos, com o fenômeno da urbanização concentrada, típico do último quartel do século XXX, e as próprias mutações nas relações de trabalho, junto ao desemprego crescente e à depressão dos salários, mostram aspectos que poderão se mostrar positivos em um futuro próximo, quando as metamorfoses do trabalho informal serão vividas também como expansão do trabalho livre, assegurando a seus portadores novas possibilidades de interpretação do mundo, dl lugar e da respectiva posição de cada num, no muno e no lugar.
Um novo mundo possível
A. Scmidt: "A realidade é, além disso, tudo aquilo em que ainda não nos tornamos, ou seja, tudo aquilo que a nós mesmos nos projetamos como seres humanos, por intermédio dos mitos, das escolhas, das decisões e das lutas".
A crise por que passa hoje o sistema, em diferentes países e continentes, põe à mostra não apenas a perversidade, mas também a fraqueza da respectiva construção. Isso conforme vimos, já está levando ao descrédito dos discursos dominantes.
O passo seguinte é a obtenção de uma visão sistêmica.
A nova consciência de ser mundo
Ousamos, desse modo, pensar que a história do homem sobre a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória.
O que conta mesmo é o tempo das possibilidades efetivamente criadas. Isso a que chamamos tempo empírico, cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos, de novas ações e relações e de novas idéias.
Pouco, no entanto, se fala das condições, também hoje presentes, que podem assegurar uma mutação filosófica do homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e, também, do planeta.