Camille.Pezzino 20/04/2020
RESENHA #88: AS RAÍZES DO CONHECIMENTO
[RELEITURA - CONTINUO ACHANDO A MESMA COISA]
Existem livros que fazem história; outros, cuja história faz parte intrinsecamente do leitor após concluir a jornada junto com o herói. Nem todo livro vai agradar a todos os indivíduos que se prestarem a lê-lo, mas todo livro – ou a maioria deles – sempre terá alguém para quem a leitura será especial.
Alguém que diga como aquele livro vale a pena.
Enraizados, definitivamente, não só representou, como apresentou extremamente bem o que é capaz de me agradar em uma história, o que é extremamente difícil quando se trata de Young Adults, histórias destinadas a jovens adultos, porque a maioria delas erra a mão quanto a críticas e mais ainda em desenvolvimento da narrativa e de personagens. Por exemplo, Six of Crows é uma trama que é encantadora por seus personagens, mas com enredo fraco; por sua vez, Corte de Espinhos e Rosas é uma narrativa que traz um plano de fundo ótimo, porém peca absurdamente no desenvolvimento de personagens e a trama possui não só características terríveis como mal elaboradas. Outras, como o Beijo Traiçoeiro, podem trazer surpresas, porém, não conseguem se manter quando essas se esgotam, trazendo histórias óbvias e com problemas de verossimilhança na construção de personagem.
Embora a escrita de Naomi Novik, ou, talvez, de sua tradutora Cláudia Belhassof (não sei, porque não li o original), não seja a mais elegante ou a mais bem modelada que já vi, pois algumas passagens são muito confusas e demandam certa releitura em momentos aqui e acolá, ela emenda tão bem a narrativa, constrói tão bem o enredo, focaliza os pontos certos nos personagens, que a escrita torna-se acessório, um acessório importante, mas acessório dentro de toda a gama de possibilidades dentro do universo que ela constrói.
O primeiro ponto positivo de Enraizados é que a autora dispensa continuações e elabora um enredo num livro só, o que, dentro desse universo fantástico de livros para jovens adultos, é bem escasso e problemático. Fazendo isso, ela não enrola, ao contrário de muitos outros, enquanto desenrola a trama, apresentando aspectos que, mais para frente, tornam-se essenciais para compreender e conectar os pontos do porquê as coisas ocorreram daquele jeito.
Logo no princípio da narrativa, por exemplo, a autora deixa claro como o universo política e culturalmente funciona. Baseado em um sistema de corte e de vilarejo, há uma construção hierárquica de valores e poderes, próximo ao nosso sistema capitalista, mas muito mais congruente ao sistema feudal, em que há o senhor e os moradores daquela terra. É impossível desejar verossimilhança ao mesmo tempo que, em certa medida, o famoso “politicamente correto”. No entanto, não é porque os preceitos morais dos indivíduos daquela sociedade não seguem o nosso padrão – dessa forma, o “politicamente correto” torna-se flexível ao que você pressupõe ser correto e justo – que a lição moral do livro vá de acordo com essa noção.
Algo que, de fato, torna-se incômodo a minha pessoa é quando o leitor não sabe diferenciar o que o personagem pensa, o que a história traz e o ponto de vista do autor. Por mais que muitos confundam, é necessário ter noção de que são três ideias completamente diferentes entre si. A primeira vai seguir os padrões sociais da narrativa, no caso, como história baseada em um sistema monárquico feudal, nenhum camponês vai, explicitamente, ir contra um príncipe; o segundo representa a lição moral da trama, isto se define não necessariamente pelas ações dos personagens, mas pelo decorrer dos acontecimentos. O último, não menos importante, pode se conectar completamente com o que a história traz, mas isso não necessariamente é verdade, pois não podemos pressupor os pensamentos de uma pessoa através de uma história sem nunca ter dialogado com o indivíduo. Como Platão, através de Sócrates, rememora-nos: o verdadeiro conhecimento está no diálogo, não no texto imutável, surdo e mudo.
Voltando a fazer um paralelo com Corte de Espinhos e Rosas, dentro dessa última trama, o conhecimento é estagnado. Uma das coisas que me fez não suportar essa narrativa, como linguista e pesquisadora sobre oralidade e escrita, é como Maas ressalta que o conhecimento, o verdadeiro conhecimento, de sua personagem só se dá depois de ela ser capaz de ler, já na continuação da trama. Isso não faz parte só da cognição da personagem, que é narradora principal, mas em nenhum momento até o segundo volume – que me fez desistir de continuar lendo a trama, confesso – dá a entender que essa ideologia é incorreta, pelo contrário, diversas vezes ela repete essa ideia, como se a leitura de textos escritos fosse o suprassumo do conhecimento. Entretanto, isso é tão errado que não posso mensurar em um único texto escrito.
Enraizados, por sua vez, vai em completa contramão dessa noção que me fez – entre outros aspectos – não suportar a leitura do livro anteriormente citado. A noção de conhecimento na obra de Novik é fluida, como as raízes que se espalham debaixo da terra, como a água que corre nos rios. Enquanto o Dragão, par romântico da protagonista, é metódico e voltado para os livros, que comprovam ou não a veracidade do mundo; Agnieszka é justamente o oposto, ela representa o conhecimento não estanque, voltado para a oralidade, o mundo e a natureza. Eles são opostos, mas não simplesmente opostos, eles são opostos complementares, o que quer dizer que nenhum é menor que o outro, ambos transmitem conhecimento e são parte dele, formando possibilidades, como o Falcão e entre outros personagens mágicos também mostram.
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