legarcia 15/02/2023
A ascensão previamente interrompida
Que estava diante de um grande autor, já tinha consciência quando iniciei mais uma leitura de Lima Barreto. E essa obra apresentou-me outro lado de Lima, que só fez alimentar mais minha admiração por esse brasileiro genial.
Aqui somos imersos na vida de Isaías Caminha, um mulato do interior muito educado, conhecedor de rica cultura e com grande ambição. Logo no começo a vontade e o encantamento de Isaías nos contagia, é uma energia jovem com desejo de desbravar o mundo.
Todavia, essa animação inicial é rapidamente e substituída por frustração e indignação quando nosso personagem chega ao Rio de Janeiro e depara-se com a realidade depravada da vida.
Sendo um mulato, Isaías sofre diversas violências, mais ou menos diretas, só que todas o provocavam dor. São os olhares de deprezo, a rispidez policial, a naturalidade que todos aceitavam que para ele só existia um destino, inferior aos brancos aristocratas. E a constatação dessa realidade acontece bem no ínicio do livro de uma forma dolorosa e asfixiante.
É escancarado para nós um jovem com um brilho, potencial e vontade para fazer muito, ser totalmente desprezado pela sociedade como se a possibilidade dele fazer algo que não fosse trabalhos manuais e pequenos era absurda e impensável. E acredito que receber essa percepção que os outros possuiam foi uma das maiores dores para Isaías, pois nada poderia ser tão diferente do seu interior.
Tudo aquilo que endereçavam a ele estava totalmente em desacordo com sua própria percepção de si. Ele tinha certeza de seu valor e de sua capacidade e ser podado tão violentamente foi brutal. É o drama da ascensão previamente interrompida, o conflito entre tudo o que ele poderia ter sido e o que ele realmente foi.
Isaías era alguém muito inteligente e logo percebe as falsidades e as superficialidades do meio jornalístico que vivia, mas gosta da vaidade, demonstrando fraqueza moral. Ele revolta-se por não ser reconhecido por sua inteligência, mas quando é exaltado por algo que não é, como no episódio que o chamam de doutor, aceita por vaidade.
Também somos imersos em um escritório de jornal por capítulos pelos quais é narrado a rotina recheada de intrigas, falsidades e pequenez. É aqui que Lima tece duras críticas ao sistema midiático, no qual pessoas fazem sucesso por influência ou por repetição de modelos vigentes. Expõe também o controle das massas exercido pelos grandes jornais, quase como um quarto poder. São escritos de mais de século, porém extremamente atuais, o que causa certa angustia.
É quase impossível separar a obra de Lima, principalmente quando tratamos dessa, de sua vida e de seu propósito literário. Essa história que foi escolhida por ele para ser sua estreia de publicação, demonstra claramente seus objetivos de argumentar contra ideias racistas e o darwinismo social, além de escancarar as hipocrisias de um sistema literário, com grande elo com o jornalismo, que não valorizava as obras apenas por sua qualidade, mas sim por interesses dos que detinham o controle sob a mídia.
Lima foi alguém extremamente inteligente e sua história em muitos pontos cruza-se com a de Isaías. Com uma percepção surpreendente da sociedade e dos mecanismos que a operam, Lima consegue refletir sobre as suas circunstâncias e fazer uma literatura de altíssima qualidade, a qual nos apresenta facetas muito reais do Brasil.
Realmente falar de Lima Barreto é uma honra. Sua obra é tão excelente que ainda possuo muitas observações acerca dessa leitura, mas seria impossível esgotá-las todas aqui. Fica então meu agradecimento a esse gigante autor brasileiro pelo qual alimento muita admiração e especial carinho.