Bruno Oliveira 10/07/2021Apontamentos sobre Isaías CaminhaSegundo o próprio autor, Recordações do Escrivão Isaías Caminha foi escrito para “escandalizar e desagradar”. Quando foi publicado, escandalizou; atualmente, acho que apenas desagrada.
Isaías Caminha, jovem negro do começo do século passado, bem educado e com aspirações intelectuais, sai do interior e vai ao Rio de Janeiro (capital brasileira na época) tentar a vida. O destino de um negro com aspirações intelectuais é interessante por si só dadas as questões ao redor de sua cor, contudo o livro se dirige menos para a trajetória de vida do personagem e mais para sua vida profissional. Depois que Isaías consegue um trabalho nos jornais, suas recordações se tornam uma espécie de exposição do funcionamento (e problemas) do mundo do jornalismo.
Para compor os personagens que o habitam, Lima Barreto se inspirou em pessoas reais ─ o leitor da época poderia divertir-se tentando desvendar qual personagem representava qual pessoa. Para nós que não temos qualquer ideia de quem eram tais pessoas, entretanto, esse divertimento inexiste. Parte da graça do livro desaparece por estar fora dele.
Além dessa exposição dos personagens, o livro também apresenta a descoberta (e frustração) do protagonista com relação à imprensa. Como ele tem uma boa formação educacional e uma aspiração intelectual sincera (sendo uma espécie de alter ego do autor), sua perspectiva desse novo trabalho é bastante negativa. A descoberta de como funcionam as publicações, reportagens, os patrocínios, conchavos, ou mesmo de como são simplórios e vaidosos os homens da imprensa, choca profundamente o protagonista, que vai se dando conta do quanto o jornalismo é sujo, mentiroso e interessado. Nada que não saibamos muito bem.
No entanto, suspeito que tais coisas fossem novidades para o público daquele período, sendo mais interessantes de se ler naquela época do que são agora, o que explica um pouco da perda de relevância do livro para nós. Há capítulos e mais capítulos na obra sobre o funcionamento do jornal e suas falcatruas, algo que, no todo, concorre para a sensação esquisita de que a história de Isaías começa nos primeiros, faz uma pausa imensa durante seus anos na imprensa, e volta lá pelos últimos capítulos quando ele volta a falar de si mesmo. Talvez eu esteja exagerando, mas não muito.
Ao longo desses vários capítulos sobre jornalismo o autor até tenta construir certo sentimento de decepção com o mundo e seus mecanismos. Esse seria o recheio da obra: a relação entre a percepção dos problemas da imprensa e o sentimento de decepção com a vida. Na prática, porém, os trechos que trabalham especificamente os sentimentos e relações de Isaías são superiores aos que tentam expor esses sentimentos por detrás de suas críticas.
Inclusive, separei um trecho em que Isaías começa, lá pelo fim do livro, a desenvolver uma relação pessoal com seu chefe:
“Percebi que o espantava muito o dizer-lhe que tivera mãe, que nascera num ambiente familiar e que me educara. Isso, para ele, era extraordinário. O que me parecia extraordinário nas minhas aventuras, ele achava natural; mas ter eu mãe que me ensinasse a comer com o garfo, isso era excepcional. Só atinei com esse seu intimo pensamento mais tarde. Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do Brasil, os homens e as mulheres do meu nascimento são todos iguais, mais iguais ainda que os cães de suas chácaras. Os homens são uns malandros, pianistas, parlapatões quando aprendem alguma coisa, fósforos dos politicões; as mulheres (a noção aí é mais simples) são naturalmente fêmeas.” (XIV)
Particularmente, o que mais gosto em Lima Barreto é sua crítica à mediocridade. O protagonista de Triste fim de Policarpo Quaresma, por exemplo, convive com militares imbecis que aspiram o reconhecimento, porém são apenas pessoas pequenas e broncas. Já Isaías está circundado por homens medíocres os quais só tem notabilidade graças à sua atuação na imprensa: eles são toscos, mas toscos cujas opiniões são públicas e patrocinadas. Somente submetendo-se a eles é que Isaías pode trabalhar e sobreviver.
Trocar cotidianamente a dignidade pelo pão, calar-se diante da estupidez e da desonestidade alheia para não perder o pouco que se tem, em suma, submeter-se ao que é baixo, medíocre e moralmente sinuoso para sobreviver, é algo terrível e que estiola Isaías pouco a pouco, destruindo suas aspirações.
Ocorre que a baixaria do meio intelectual não só trai a intelectualidade como também deixa sem lar aqueles que venceram barreiras sociais para adquirir conhecimento, não podendo voltar de onde vieram. Não há volta para aqueles que tiveram a estranha ideia de “contrariar estatísticas” e se envolver em esferas sociais às quais não lhe foram legadas por nascimento. Ser um negro estudado do século passado significa que Isaías não encontra lugar entre os pobres com os quais cresceu, ao mesmo tempo em que também não pode habitar o mundo branco do jornalismo.
Nesse sentido, Isaías (e Lima Barreto?) é alguém cuja vida depende daquilo que o exaure pouco a pouco e que também não pode voltar às próprias origens ─ de que serviria um intelectual negro na terra das enxadas, afinal? Anos antes, Lima Barreto chegou a escrever: “Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer, em vida comum com eles”. A relação entre autor e protagonista é bastante direta nesse caso.
Para concluir, penso que Recordações do Escrivão Isaías Caminha não é uma grande obra literária. Muito do livro perdeu relevância com o tempo (talvez não para historiadores da imprensa) e aquilo que ele possui de melhor é o menos abordado pelo autor. Apesar disso, por detrás das insuficiências de Isaías Caminha, está esse intelectual superabundante chamado Lima Barreto. Creio que seja pouco importante que o meio que ele tenha escolhido para expressar sua mensagem não seja o que há de melhor em nossa literatura. A riqueza do homem, de algum modo, ainda está lá.
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