Ana Seerig 15/10/2023
Para colocar os pés no chão
Nas últimas semanas, para tentar lidar com a ansiedade a mil, busquei Christiane F na estante. Essa história, por mais chocante que seja, sempre me faz colocar os pés no chão: ela me lembra que, independente do nível dos problemas (sejam nossos ou dos outros), nossas decisões são responsáveis pelos resultados.
Já reli tantas vezes esse livro e a cada leitura um detalhe sobressai. Em uma, reparei que o Muro de Berlim era parte do cenário. Em outra, resolvi descobrir David Bowie e fui atrás de Erich Fromm. Se Dessa vez eu me dei conta que o que mantém a importância desse livro (um livro-reportagem - só agora isso se escancarou para mim) é a necessidade de alerta para os vícios. Vícios são soluções rápidas e fáceis para problemas e, apesar de estarmos longe de erradicar o consumo de drogas ilícitas, dessa vez acendeu a luz de alerta para todos os outros vícios fáceis de hoje: não falo só de drogas lícitas (álcool e cigarro), mas de redes sociais, tecnologia e a mania de se fugir da solidão pulando de um relacionamento a outro. São caminhos fáceis para se provar ao mundo a felicidade pressionada pela nova profissão do mundo atual: os influenciadores (ainda não entendi o atrativo dessa onda).
Continuo a não aceitar o apelativo título da edição brasileira (a prova do apelo está no fato de que Christiane só experimenta H há um mês de seu aniversário de 14 - sei que isso não diminui o drama, mas prova o exagero do título), porém me consola saber que a iniciativa não foi nossa: na França também teve esse título. Originalmente, o livro se chama "Wir, Kinder vom Bahnhof Zoo" - em português, "Nós, crianças da estação Zoo" -, ou seja, um título que chamaria mais atenção dos pais e impediria possíveis proibições de leitura (uma das vezes em que emprestei, a leitora foi chamada para uma palestra individual na sala da diretora da escola).
Essa história vai sempre incomodar, mas o incômodo gera alerta. É triste ver que os caminhos de Christiane se repetem hoje e os problemas se mantêm: pais apáticos achando que estão evitando a repetição de seus traumas e/ou compensando o excesso de trabalho com presentes. Será que um dia a sociedade terá maturidade para lidar com a infância?