Coruja 02/02/2017O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller começa com um Bruce Wayne envelhecido e aposentado de suas excursões noturnas como vigilante. Dez anos se passaram desde que ele pendurou a máscara, e Gotham passa por uma onda de violência liderada por uma gangue chamada “Mutantes”. A corrupção e inércia do governo fazem com que a situação chegue a um ápice caótico e Bruce, incapaz de continuar em silêncio, retorna ao uniforme de Batman para limpar as ruas da cidade.
Enquanto Batman aterroriza os criminosos de Gotham, e com sua volta, traz de reboque o despertar do Coringa - que preso no Asilo Arkham, estava catatônico há anos -, o ressurgimento do Duas Caras e uma nova Robin, descobrimos que dos antigos heróis, apenas Superman continua na ativa, como um agente secreto do governo americano e arma especial contra os soviéticos, com referências claras à Guerra Fria e a ameaça de um inverno nuclear que pesa sobre uma sociedade cada vez mais paranóica e histérica.
Os heróis vivem aqui numa área cinzenta, com Superman e Batman em dois espectros opostos na sua interpretação de justiça. Enquanto Clark serve a um governo e se prende às suas ordens e leis, agindo como cão de guarda secreto do presidente (que mesmo com a troca de nome pode ser reconhecido como Ronald Reagan), Bruce não hesita em justificar e até glorificar a violência necessária à imposição de sua ideia de moralidade. O Batman é uma sombra maior que o próprio Bruce por sua reputação e legado, algo pior que um criminoso, pois capaz de lhes inspirar terror e medo.
A reimaginação de Miller para Bruce Wayne influenciou tudo o que veio depois. Até então, Batman era associado especialmente ao seriado cômico dos anos 60, no qual o homem morcego era interpretado por Adam West. Após O Cavaleiro das Trevas, houve um retorno à origem mais sombria do vigilante, carregando ainda as tintas em sua natureza obsessiva e amargurada, e tornando sua posição de herói extremamente ambígua. Afinal, arvorando-se juiz e executor, os atos do Batman podem ser construídos como tão criminosos quanto os dos vilões que persegue.
Publicadas em 1986, a obra de Frank Miller, junto com Maus de Art Spiegelman e Watchmen de Alan Moore, foram consideradas o clímax de um ano extremamente prolífico para a indústria dos quadrinhos. No esteio da revolução iniciada por artistas como Stan Lee e Jack Kirby - que na década de 50 trouxeram para o gênero dos super-heróis uma caracterização mais realista, com personalidades complexas, que evoluíam ao longo das histórias - e do início das lojas especializadas em quadrinhos, na década de 70, essas histórias passaram a tratar de questões sociais e políticas contemporâneas, chamando a atenção da crítica, que até então encarava quadrinhos como ‘coisa de criança’.
Spiegelman, com sua obra autobiográfica, retratou o holocausto e seu alcance e horror mesmo décadas após o final da guerra. Moore e Miller, por sua vez, exploraram o ambiente da Guerra Fria, sendo ambos marcados pelo espectro da bomba atômica. Corrupção, manipulação midiática, paranóia, sexo, heróis ambíguos, direitos humanos, anarquia e desobediência civil - é possível encontrar ganchos para ricos debates em todas essas histórias.
Para aqueles que acompanham a trajetória do Batman ou que se interessam pela história dos quadrinhos, O Cavaleiro das Trevas é leitura obrigatória. Bom observar ainda que à minissérie em quatro edições publicada em 86, seguiram-se duas continuações, uma em 2001, outra iniciada em 2015, que embora não tenham tido o mesmo impacto daquela primeira parte, também somaram à mitologia do Batman e continuam a inspirar os artistas que trabalham com o personagem hoje.
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