Darlan 25/08/2018
Resenha - A elite do atraso
A obra de Jessé Souza, “A elite do Atraso, da escravidão à lava jato”, apresenta claramente como objetivo central a formulação de uma contraposição à interpretação dominante do Brasil, baseada principalmente no clássico “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, e sua ampla influência entre os intelectuais brasileiros de todos os espectros políticos.
Segundo o sociólogo, Holanda conseguiu construir uma narrativa totalizadora do Brasil e de sua história que foi fortemente internalizada pelas gerações posteriores, e que acabou por se tornar inquestionável. Contudo, essa narrativa, conforme seu ponto de vista, apresenta algumas falhas conceituais que ele pretende criticar a partir da análise de três eixos temáticos fundamentais, são eles: (a) a experiência da escravidão; (b) a luta de classes por privilégios e a constituição de alianças e preconceitos a partir dela, desde o período colonial; e (c) a elaboração de um diagnóstico acurado do momento atual a partir dos dois eixos anteriores.
Antes de abordar diretamente os eixos temáticos propostos, Jessé Souza coloca um capítulo inicial, “O racismo de nossos intelectuais: o brasileiro como vira-lata”, no qual introduz sua perspectiva sobre a grande influência negativa da obra de Holanda entre os intelectuais brasileiros e discorre de forma clara e convincente sobre a necessidade de uma drástica ruptura epistemológica no campo da sociologia brasileira. Para o autor, a narrativa de Raízes do Brasil se impôs de tal forma como paradigma da sociologia em nosso país, que até mesmo aqueles que tentam criticá-la acabam por reforçá-la como referência fundamental, na medida em que as críticas ocorrem sempre dentro do campo delimitado pela própria obra. Ou seja, “a inovação possível dentro de um mesmo paradigma é sempre superficial e nunca sequer toca o aspecto principal” (p. 15).
Souza nos mostra que a base da interpretação dominante que temos no país é, ainda hoje, em grande parte racista. Para o autor, o paradigma atual, chamado “culturalista” pelas ciências sociais, nada mais é do que uma falsa ruptura com o paradigma anterior, denominado como “racismo científico”. Assim, o culturalismo, nascido da “teoria da modernização” americana (que usa como argumento uma herança cultural do protestantismo individualista para explicar o porquê de algumas sociedades serem ricas e adiantadas e outras pobres e atrasadas), nada mais é do que uma continuação do racismo científico, na medida em que insiste numa separação ontológica entre os seres humanos.
Nessa perspectiva, é interessante apontar que o autor utiliza o termo “racismo” para definir quaisquer “formas de hierarquizar indivíduos, classes e países sempre que o mesmo procedimento e a mesma função de legitimação de uma distinção ontológica entre seres humanos sejam aplicados” (p. 18). Seu argumento é o de que a substituição da diferenciação através da raça para uma diferenciação através do estoque cultural acarreta, nos dias atuais, numa reprodução de preconceitos com base em explicações pretensamente científicas, da mesma forma que ocorria anteriormente nas teorias do racismo científico da cor da pele, dividindo o mundo em pessoas de maior e menor valor.
Com isso, o racismo culturalista passa a ser uma dimensão não refletida e indiscutível, seja na relação entre os povos, seja na relação entre as classes de um mesmo país. Dessa forma, as ideias dominantes passam a atuar quase que na profundidade do subconsciente, perpetuando de forma inquestionável uma hierarquia moral invisível que divide sociedades inteiras em seres superiores e inferiores, na medida em que moldam todas as nossas ações cotidianas e todas as nossas instituições, do Estado à família. Souza destaca ainda que “o grande problema dessas hierarquias que se tornam invisíveis e pré-reflexivas é sua enorme eficácia para colonizar a mente e o coração também de quem é inferiorizado e oprimido” (p. 22).
Dito isto, ele expõe o início da criação da identidade nacional brasileira, ainda nos anos de 1930, com Gilberto Freyre. Para o autor, Freyre construiu de forma bastante consistente o enredo do Brasil moderno, ainda que prisioneiro do paradigma do racismo científico, e conseguiu, dentro dessa limitação de uma condenação prévia das sociedades ditas periféricas, criar um sentimento de identidade brasileira que se aproximava de um “orgulho nacional”, que tinha como raiz ideias reproduzidas até hoje como a falsa continuidade com Portugal e a emotividade como traço singular da nossa cultura.
Essa versão, no entanto, foi logo criticada por Sérgio Buarque de Holanda, que opera duas transformações essenciais para a emergência de um culturalismo racista no Brasil, são elas: (a) a mutação do brasileiro para o homem cordial; e (b) o alongamento dessa noção de cordialidade para o Estado brasileiro, numa noção de Estado patrimonialista.
Essas transformações jogam por terra as poucas críticas que Freyre fazia no sentido de enfrentar o determinismo do racismo científico. Essa se tornou uma visão hegemônica da identidade do brasileiro e é fundamental para a legitimação do liberalismo conservador, tornando os verdadeiros conflitos invisíveis.
Essa é a origem da ideologia do “vira-lata” brasileiro de Holanda, nunca antes realmente contestada, uma vez que se trata de uma ideologia universalista, que a princípio, nos apresenta respostas a todas as perguntas que se possa fazer sobre o Brasil.
Após essa breve revisão sobre o surgimento do paradigma sociológico brasileiro, Souza passa à análise dos três eixos centrais da obra, a começar pelo tema da escravidão, no capítulo intitulado “A escravidão é nosso berço”. Nele, o autor afirma ser necessário reconstruir uma narrativa alternativa que possa desconstruir o culturalismo racista conservador, de forma que possamos reconstruir a sociedade brasileira de modo novo e crítico, ou seja, uma nova forma de se pensar o Brasil.
Assim, ele inicia sua critica dando ênfase na importância da escravidão na construção da nossa sociedade e demonstrando a fragilidade da interpretação dominante que sinaliza para uma continuidade em relação à sociedade portuguesa. Seu argumento é de que os seres humanos são socialmente construídos por influência das instituições, e todas as nossas (família, economia, política e justiça) foram baseadas na escravidão.
Assim, a partir de uma releitura da obra de Gilberto Freyre, o autor expõe a influência da família patriarcal do Brasil Colônia na formação da nossa sociedade, dando destaque, inclusive, para a existência de um modelo de escravidão familiar e sexual de influência moura e muçulmana. Dessa forma, “sendo uma espécie de instituição total no Brasil, a forma peculiar da escravidão traria consigo a semente da forma social que se desenvolveria mais tarde” (p. 44). Nesse contexto, o caráter autárquico do domínio senhorial, condicionado pela ausência de instituições acima do senhor territorial imediato, não propicia a constituição de freios sociais ou individuais, o que faz com que o elemento familístico seja seu componente principal, calcado na coerção pela violência e culminando em valores de um “sadomasoquismo social”. Para o autor, “foi sádica a relação do homem português com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres brancas, as bonecas para reprodução e sexo unilateral de que nos fala Freyre. Era sádica, finalmente, a relação do senhor com os próprios filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos” (p. 53).
Esse sadismo transformado em mandonismo, expressa o senhor de terras como um hiperindivíduo dentro dessa sociedade patriarcal, e contraria a percepção patrimonialista de Holanda de que a elite vampiresca brasileira estava instalada no Estado. Ou seja, desde o Brasil Colônia, os mandatários do Estado são os proprietários rurais, num primeiro momento, e depois (com a chegada de algumas instituições capitalistas: o mercado competitivo e o Estado burocrático centralizado) os proprietários urbanos.
Com a passagem do patriarcalismo rural para o urbano e a ascendência de uma cultura citadina no Brasil, os valores “universais” europeus e as ideias burguesas se contrapõem aos valores antieuropeus do interior. Contudo, houve sempre uma percepção de que o processo de modernização brasileiro foi, de maneira geral, marcadamente epidérmico. Esse tipo de interpretação é uma das bases do racismo culturalista de Sérgio Buarque de Holanda, que o classifica como uma simples adoção de comportamentos exteriores, de forma superficial e inautêntica. Esse ponto de vista ignora o surgimento, nesse período, de novos valores e novos padrões de comportamento, mesmo que de forma segmentada e seletiva (excluindo as camadas mais pobres e origem da divisão social moderna brasileira), no qual os antigos senhores começam a perder parte de sua autoridade para os portadores desses valores europeus, pessoas “refinadas” da alta sociedade burguesa citadina. É a passagem do sistema “Casa Grande e Senzala” para o sistema “Sobrados e Mocambos”, que acarreta em uma transição dos poderes político, econômico e cultural, do campo para a cidade. Esse processo trás consigo condições ainda piores para negros libertos e a população pobre de maneira geral, aumentando a segregação social. Os negros passam a ser vistos como uma ameaça nas cidades, o que provoca um processo de aprofundamento da sua marginalização dentro da sociedade brasileira.
Todas essas transformações acabam por desvalorizar as duas posições extremas do espectro social, ou seja, o escravo e o senhor de terras. Isso acarreta na emergência de um elemento intermediário. Indivíduos de status intermediário, muitas vezes mulatos e mestiços, e quase sempre assumindo funções de agregados nas famílias, começam a ganhar mais destaque na sociedade, dando início a oportunidades de mobilidade social, impensáveis no modelo social anterior. Esses mulatos começam a galgar posições de certo privilégio em relação aos negros, mas que não eram boas o suficiente para os brancos. Essa é a semente do surgimento da classe média brasileira, cujo principal privilégio será a concentração do capital cultural.
“Desse modo, o processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro. Tanto o escravo quanto o pária dos mocambos nas cidades era o elemento em relação ao qual todos queriam se distinguir” (p. 66).
Essa é também a origem do ódio ao pobre no Brasil, na medida em que os agregados ou “mulatos bacharéis” (na expressão de Freyre) tinham que usar roupas impecáveis para poder se distinguir da “ralé”. Trata-se de um sistema que transforma os biologicamente mulatos em sociologicamente brancos, e que, ao permitir que eles assumam posições sociais que nas sociedades escravocratas são privilégio dos brancos, cria uma situação de superexploração do negro de todas as formas imagináveis. Assim, além de provocar a separação entre mulatos e negros, acaba por tornar aqueles ainda mais servis aos brancos (uma vez que, disputando, em alguns casos, posições com os brancos, surge o “sorriso fácil” e a “cordialidade” do mulato brasileiro). Além disso, é nesse contexto que a vestimenta toma a enorme importância que vemos no Brasil de hoje, já que desde essa época ela passa a servir como elemento de uma diferenciação social, que antes sequer precisava de externalização. Assim, “a própria ênfase na distinção do traje ou a violência das humilhações públicas contra os mestiços que usavam casaca ou luva já demonstram, como uma consequência mesma do acirramento das contradições a partir da competição com indivíduos brancos antes seguros de sua posição(...)” (p. 67).
Todo esse processo de embranquecimento dos mulatos só foi alterado com a chegada dos imigrantes europeus no fim do século XIX, ou seja, quando os mulatos passam a não ser mais necessários para ocupar essa posição intermediária.
Esta, segundo o autor, é a gênese do pacto antipopular que hoje vivenciamos entre a elite e a classe média, um pacto que racionaliza e naturaliza a desigualdade social, da forma como a percebemos atualmente.
No capítulo seguinte, “As classes sociais do Brasil moderno”, o autor foca no processo de construção das classes sociais que temos hoje em nosso país. É relevante destacar o entendimento complexo de “classe social” para Jessé Souza, que vai muito além de um entendimento economicista (presente não só na literatura liberal, mas também na marxista), mas sim como um fenômeno sociocultural, com origem na socialização familiar primária. Segundo esse entendimento, as classes sociais são definidas principalmente pelos seus conflitos por recursos escassos de ordem não apenas econômica, mas também cultural.
Nesse contexto, a abolição formal da escravidão no Brasil acabou por criar, segundo o autor, uma classe que ele denomina de forma provocativa, para denunciar seu abandono, de “ralé brasileira”, ou seja, uma ralé de novos escravos como continuação da escravidão no Brasil moderno. Sob essa perspectiva, a existência dessa classe singulariza e explica a situação social, política e econômica do Brasil como nenhuma outra questão.
Jessé Souza parte então de uma análise do sociólogo Florestan Fernandes, em sua obra “A integração do negro na sociedade de classes”, na qual o quadro geral da sociedade de classes depois da escravidão se apresenta numa clara segmentação (no topo as famílias proprietárias rurais de cafeicultores; abaixo os imigrantes europeus e os segmentos semi-instruídos de origem nacional; abaixo desses, a plebe nacional, composta por brancos que vinham do campo para as cidades, em busca de melhores condições de vida; e por último, os negros recém-libertos e outros mulatos e mestiços miseráveis, para quem a nova configuração social era apenas uma nova forma de degradação). Ou seja, para Souza, os novos estratos desenhados por Fernandes marcam a modernização seletiva e desigual brasileira desde então. Nesse processo de modernização, é exigido dos negros que se tornem trabalhadores orgulhosos de seu trabalho, o mesmo trabalho que foi fonte primordial do seu sofrimento nos últimos 300 anos. O negro é jogado num cenário de competição com o imigrante italiano, acostumado com o modelo capitalista competitivo, e para quem o trabalho sempre havia sido motivo de orgulho e auto-estima. Souza destaca ainda o início de uma “matrifocalidade” das famílias negras a partir desse processo, já que as imigrantes estrangeiras não tinham familiaridade com os serviços domésticos. Com isso, as mulheres negras passam a simbolizar uma referência econômica e social de estabilidade para suas famílias.
Esse processo de difícil adaptação dos negros ao trabalho livre cria conflitos dentro da própria classe, uma vez que aqueles que não desejavam se “europeizar” eram vistos como um problema, criando um enorme medo nos centros urbanos de uma “rebelião negra”. Ou seja, além de dificultar a solidariedade dentro da própria classe, na medida em que cria uma divisão entre o pobre trabalhador e o pobre delinquente, cria-se um permanente estado de medo das outras classes em relação aos negros. Esse fator legitima a repressão e a humilhação dos setores mais pobres da sociedade desde aquele período até os dias de hoje.
Contudo, Jessé Souza aponta que, apesar da análise acurada da sociedade, Florestan Fernandes ainda estava preso ao paragidma da teoria da modernização. Assim, Fernandes aponta em sua obra que o negro não conseguiu se ajustar às novas condições da sociedade por que o processo de modernização da sociedade brasileira não foi profundo o suficiente. Ou seja, ele apresenta a crença de que o mercado competitivo por si só poderia ser inclusivo e emancipador. Jessé Souza nos mostra que, ao contrário, ele tende a adaptar a marginalização de alguns e torná-la produtiva e funcional aos estratos superiores, como podemos ver no caso atual da exploração da ralé brasileira pela classe média que, para poupar tempo de tarefas indesejadas e transformar esse tempo em atividades mais produtivas e bem remuneradas, compra a preço vil o tempo e a força de trabalho da ralé.
Dessa forma, “ao contrário da ordem escravocrata, onde os lugares são visíveis e decididos pelo fenótipo e pelo status de origem do modo mais claro possível, a produção da desigualdade na nova ordem é opaca e não transparente aos indivíduos que atuam nela” (p. 81). Nesse contexto, é importante destacar que mesmo que existam minorias de todas as cores, não há como separar o preconceito de classe do preconceito de raça. Se nos dias atuais a ralé brasileira (composta por pessoas de todas as cores) é perseguida e estigmatizada, isso é uma forma de continuação da escravidão e seus padrões de ataque contra populações indefesas, ou seja, “nossos excluídos herdaram, sem solução de continuidade, todo o ódio e o desprezo covarde pelos mais frágeis e com menos capacidade de se defender” (p. 83). Assim, torna-se notável que o primeiro “sintoma” do pertencimento à essa ralé brasileira, é a pele negra.
É importante ainda destacar que sua abordagem aponta para uma forte tendência de invisibilização dos conflitos de classe no Brasil moderno como herança de um Brasil escravocrata. Não apenas a negação do conceito de classe social (com a utilização de noções meramente economicistas para distinção das classes), mas também a utilização de discursos legitimadores dos privilégios de classe (definindo-os como algo inato dessas classes), são alguns dos principais mecanismos para essa naturalização da segregação. O resultado desse processo é a negação de todos os outros fatores importantes nas formas modernas de produzir injustiças e desigualdade (sintetizado no falso discurso da meritocracia).
Assim, ao ignorar a influência do comportamento diferencial das classes e da socialização familiar primária na formação dos indivíduos, temos como resultado uma uniformização do comportamento da classe média em todas as outras classes na luta pelo acesso aos capitais (capital econômico, capital cultural e capital social). O ponto de partida de cada classe (e os privilégios produzidos pelo monopólio de cada um desses capitais) é ignorado nessa competição, o que acaba por legitimar o discurso da meritocracia. A classe média compra não apenas o tempo livre dos seus filhos, mas lhe oferece condições para uma “condução racional da vida” que não existem nas classes mais pobres (os estímulos à leitura e ao pensamento prospectivo são alguns deles). Nesse contexto, “o pobre e excluído, ao concluir a escola como um analfabeto funcional, como tantos entre nós, se sente culpado pelo próprio fracasso e tão burro e preguiçosos como os privilegiados, que receberam tudo ‘de mão beijada’ desde o breço, costumam percebê-lo. O círculo da dominação se fecha quando a própria vítima do preconceito e do abandono social se culpa por seu destino, que foi preparado secularmente por seus algozes.” (p. 101).
Dessa forma, o autor nos mostra como foi tramada e projetada a continuidade de uma sociedade sem aprendizado moral e sem culpa, através de um pacto antipopular da elite com a classe média, especialmente a partir da década de 1930 (período em que parte dessa classe média começa e demonstrar sua insatisfação com o uso do poder apenas pela elite, com especial destaque ao movimente tenentista e a ascensão de Getúlio Vargas, que inaugura um Estado interventor e reformador como nunca antes a sociedade brasileira havia testemunhado). É nesse contexto do surgimento do Brasil “moderno” que a elite percebe a necessidade de desenvolver novos meios de dominação sobre essa classe média, uma vez que o chicote, utilizado sem percalços contra a ralé, não seria uma opção. É o contexto da criação da grande imprensa, das grandes universidades, do mercado editorial e do desenvolvimento de uma esfera pública burguesa colonizada, elementos através dos quais a elite nacional passará a exercer o controle da sociedade brasileira não apenas economicamente, mas também social e politicamente. Ou seja, “o domínio da elite sobre a classe média é simbólico e pressupões o convencimento. O domínio sobre as classes populares baseia-se, ao contrário, mais na repressão e na violência material” (p. 115).
É interessante destacar que Jessé Souza utiliza a noção de “esfera pública burguesa” do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, ou seja, uma esfera composta de sujeitos privados com opinião própria que assegura a possibilidade da contraposição coletiva a decisões discricionárias do poder público. Essa esfera pública emerge no contexto da passagem do capitalismo comercial para o capitalismo industrial, e foca na questão da legitimidade discursiva da política. Assim, ela ser entendida como uma reunião de pessoas privadas no espaço público, debatendo de forma crítica as decisões do aparelho estatal, como nos cafés, salões e clubes sociais que proliferam junto com o crescimento das cidades e fazem parte da constituição de uma nova subjetividade burguesa. É nesse contexto que surge a ideia de soberania popular como única legitimação possível do ato político.
Profissionais liberais, pastores, comerciantes e professores formam a base dessa nova esfera pública. Com isso, temos uma ampliação do público que exige a consideração de seus interesses pelo Estado, que antes podia visar apenas os interesses das elites sem ser realmente incomodado. Contudo, quando as massas menos letradas do proletariado também passam a reivindicar seus interesses na esfera pública, essa se torna um espaço de pressão. Nesse contexto é que surge a noção de populismo como mecanismo de deslegitimação dos interesses populares.
Outra referência relevante utilizada por Souza para explicar esse pacto antipopular da elite com a classe média através de uma esfera pública colonizada pelo dinheiro durante essa passagem do capitalismo comercial para o capitalismo industrial é a noção de “indústria cultural”, de T.W. Adorno. Caracterizada pela aplicação da lógica capitalista de maximização dos lucros à esfera dos bens simbólicos – numa espécie de mercantilização de bens culturais como a informação e o conhecimento – a indústria cultural desvirtua o próprio valor de uso dos bens culturais, que deixam de servir para o desenvolvimento da capacidade reflexiva e passam a servir ao seu oposto, à homogeneização do pensamento, na medida em que precisam abrir mão de qualquer complexidade para que possam ser vendidos em massa.
É nesse período que ocorre a passagem da imprensa de opinião, que servia ao debate público, para a imprensa de negócio, com vistas apenas em sua própria rentabilidade. Em reação a esta transformação da indústria cultural, vários países democráticos passaram por um processo de reformulação da imprensa, com o surgimento do modelo público de imprensa televisiva (que não se confunde com televisão estatal). Infelizmente, no Brasil, prevaleceu o pacto antipopular, e a elite construiu a esfera midiática adequada para atender aos seus próprios interesses, criando um cenário de colonização da opinião pelo dinheiro, que Habermas chama de refeudalização da esfera pública.
Esse aparato midiático é utilizado então para difundir a teoria liberal moralista, contido em duas noções que foram desenvolvidas na Universidade de São Paulo - USP, e que depois ganharam o Brasil: as ideias de patrimonialismo e de populismo. A esfera pública brasileira passa a orbitar sempre em torno desses dois conceitos, que servem agora não apenas para invisibilizar os privilégios da elite, mas também para criar a narrativa da justificação e da autojustificação dos setores médios da sociedade. Ou seja, é a consolidação do pacto desses setores. “Juntas, a demonização da política e do Estado e a estigmatização das classes populares constituem o alfa e o ômega do conservadorismo da sociedade brasileira, cevado midiaticamente todos os dias desde então” (p. 136).
Nesse contexto, o autor demonstra ainda que essa justificação da classe média, que legitima seu modo de vida e sua visão de mundo, ocorre tanto para cima quanto para baixo. Assim, a classe média se justifica para cima com o moralismo (uma vez que sem acesso aos grandes esquemas de corrupção e às negociatas da elite, num misto de inveja e ressentimento, ela pode se enxergar como moralmente perfeita em comparação aos ricos e poderosos), enquanto se justifica para baixo com o populismo (instrumento através do qual pode revestir de caráter científico seu preconceito contra qualquer tentativa de mitigação do sofrimento das classes mais baixas).
É com base nesse argumento que Jessé Souza reforça seu ponto de vista de que o passado que nos domina não é a continuidade com o Portugal pré-moderno, mas sim o passado do escravismo, do qual herdamos o desprezo e o ódio covarde às classes populares. Esse fator acaba por tornar impossível uma sociedade igualitária como a europeia. Segundo o autor, foi precisamente porque a Europa não teve escravidão que Norbet Elias pôde construir o processo civilizatório europeu à partir da ruptura com a escravidão da antiguidade, num processo de homogeneização social que permitiu a construção de um patamar mínimo universalizado para todos. Ou seja, na Europa houve um processo de aprendizado em relação ao sofrimento alheio que transformou mecanismos psicossociais, como culpa e remorso, em gatilho para uma sensibilidade política em relação aos sujeitos mais frágeis. Essa é nossa principal diferença em relação à Europa. Lá não se tem a divisão entre "gente" e "não gente" que temos no Brasil em consequência da desumanização dos escravos. O fato de que a nossa ralé seja sistematicamente explorada, humilhada, assassinada, chacinada e etc., sem que isso cause se quer comoção da opinião pública (e às vezes, pelo contrário, isso seja celebrado como uma higiene social) é o principal sinal de que existe uma classe que é percebida como subgente, e que o fato de que eles levem uma subvida é natural.
Afinal, o moralismo seletivo de nossas classes do privilégio vem daí e foi cevado para construir a solidariedade entre a elite e a classe média, contra qualquer pretensão das classes populares, sempre com base no patrimonialismo (da corrupção somente no Estado), e do populismo (que torna suspeita qualquer ação política popular no Brasil).
Com tudo isso em mente, fica mais fácil entender os motivos e os meios de dominação da elite do dinheiro no Brasil. Sempre esteve na base do contrato social do Estado de bem-estar a ideia distributiva de que uma estrutura de impostos na qual quem ganha mais paga mais seria a base financeira que possibilitaria uma sociedade igualitária.
Contudo, com a dominância crescente do capitalismo financeiro, todo esse esquema cai por terra. Na medida em que os donos do capital (diferentemente do capitalismo industrial fordista) podem retirar de um país investimentos bilionária com apenas um clique, seu poder de barganha aumenta a tal ponto que os ricos podem se dar ao luxo de quebrar esse pacto democrático.
A partir da consolidação desse novo espírito do capitalismo, especialmente a partir de 1990, essa elite do dinheiro passa a possuir um poder de barganha tão grande que passa a, literalmente, chantagear o Estado. Dessa forma, além de não pagar mais os impostos previstos nesse pacto democrático, ela força uma situação em que o Estado precisa agora financiar suas ações com essa própria elite. Ou seja, o Estado passa a "pedir emprestado" aquilo que a elite se recusa a pagar. Esse empréstimo é dado a juros exorbitantes, no caso do Brasil, estratosféricos, num sistema de concentração de renda que remunera o 1% mais rico pelo próprio dinheiro que eles deveriam pagar em impostos. É um verdadeiro sequestro do orçamento público, que é pago agora em sua maioria pela classe média e pelos pobres, mas que deixa de ser usado em serviços essenciais para pagar de volta aos ricos aquilo que eles deveriam ter pagado com impostos. Os muito ricos passam a ser credores de toda a sociedade, e passam a exigir dela todo tipo de sacrifício (medidas de austeridade fiscal do Estado) por meio de uma dívida pública criada por esse sistema de chantagem.
Essa é a verdadeira corrupção que temos em nosso país, mas que é invisibilizada pelas narrativas criadas pela elite e legitimadas pela classe média. Esse 1% que tudo detém não é mais dono apenas do agronegócio, dos imóveis nas cidades, dos bancos e dos fundos de investimentos. Ele agora é dono do orçamento do Estado.
É esse também o contexto em que o capitalismo financeiro doma o conteúdo revolucionário do expressivismo e transforma as bandeiras da contracultura em estímulo à produção. A criatividade passa a ser definida como soluções ágeis a problemas corporativos, enquanto a sensibilidade passa a ser a habilidade de gerir pessoas. É o período da introdução da lean production no Ocidente, com a contratação de jovens sem passado sindical, sem identidade de classe e sem vínculos de pertencimento de classe. Jovens que já foram educados dentro da narrativa produzida pela elite e que vê na empresa o lugar de produção de sua identidade. O capitalismo só sobrevive se engolir seu inimigo e transformá-lo nos seus próprios termos, ou seja, nos termos da acumulação infinita de capital.
Por fim, neste capítulo o autor apresenta ainda uma introdução a estudos em andamento que pretendem aprofundar seu conceito de classes, especialmente focado nos estrados da classe média. Para ele, essa classe está divida, com base em sua visão de mundo e sua noção de moralidade, em pelo menos quatro estratos básicos, são eles: (a) a classe média protofacista, que representa aproximadamente 30% do total dessa classe; (b) a classe média liberal, com 35%; (c) a classe média expressivista, ou "classe média de Oslo", com 20%; e (d) a classe média crítica, com 15% do total.
É importante mencionar que os dois últimos estratos são aqueles com maior acumulação de capital cultural, o que os difere principalmente não é nenhuma posição política particular, mas uma percepção pela parcela crítica de que o mundo social não é dado, mas sim construído. Ou seja, uma percepção que exige uma relação mais ativa com essa construção, de luta constante contra a corrente dominante.
Já no último capítulo, intitulado "A corrupção real e a corrupção dos tolos", Jessé Souza demonstra como a sociedade brasileira é colonizada por uma mesma interpretação do patrimonialismo como o principal mal de nossa sociedade. Para isso, ele utiliza três exemplos de intervenções públicas de figuras de frações diferentes da classe média que exprimem um pensamento bem similar no tocante a este tema, a saber: (a) o procurador da lava-jato, Deltan Dallagnol, representando a fração protofascista; (b) o ministro Luis Roberto Barroso, representando a “classe média de Oslo” e a classe média liberal; e (c) o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, representando a classe média crítica.
O autor destaca como, infelizmente, a leitura conservadora da sociedade brasileira permeia inclusive o discurso dessa última fração, a parcela crítica, na medida em que ela também reproduz (mesmo que não da mesma forma) o discurso dominante do “jeitinho brasileiro” e do “homem cordial”, reforçando a falsa oposição entre mercado idealizado e Estado corrupto.
Isto permite que o conceito de patrimonialismo possa ocupar o lugar que a noção de escravidão e das lutas de classes deveriam ocupar para explicar os principais problemas sociais brasileiros, acarretando na invisibilização de nossas heranças escravocratas e legitimando o “acordo entre os desiguais”, que é devidamente consumado pela mídia brasileira, através da violência simbólica do controle da produção intelectual e da informação. “A Globo é a mídia por excelência que fez reverberar na população indefesa o pacto antipopular que reconstruímos neste livro” (p.218).
Por fim, Jessé Souza analisa ainda a questão da dívida pública brasileira e os altos juros que, segundo ele, representam os principais motivos para as dificuldades fiscais do país.