Inteligência e Metafísica em Ibn Sīnā

Inteligência e Metafísica em Ibn Sīnā Miguel Attie




Resenhas - Inteligência e Metafísica em Ibn Sīnā


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Erick 18/04/2021

sobre a filosofia árabe e seu maior expoente
Este livro, resultado das pesquisas do professor Miguel Attie Filho sobre a filosofia árabe (falsafa), tem como os dois objetos centrais a inteligência e a metafísica, tal qual essa noções aparecem no pensamento de Ibn Sina (Avicena) em sua vasta obra, mas principalmente na sua Magnum opus Al-Shifa, cujos interesses passam pela metafísica, as ciências, a lógica, a medicina, a psicologia, a biologia etc – em suma, é uma obra enciclopédica que tenta descrever todo o conhecimento humano de modo sistemático e arquitetônico.
Um de seus mais fiéis discípulos, Al-Juzjani - que completou sua autobiografia - relata o ambiente intelectual de Ibn Sina em Hamadan, um dos mais produtivos de sua vida: "todas as noites seus discípulos se reuniam em sua casa. Alternávamos na leitura: enquanto eu lia a Al-Sifa, algum outro lia o Canon. Quando terminávamos, diferentes classes de cantores faziam-se presentes e a sessão de bebidas com seus utensílios era preparada" (p.16). Este fragmento revela as diversas faces do homem Ibn Sina: ao mesmo tempo em que acumulava o cargo de vizir e escrevia suas obras enciclopédicas, não deixava de lado a formação de seus discípulos numa espécie de grupo de estudos de seus livros, além de conciliar tudo isso com a diversão da música e bebidas, ou seja, foi um homem que não renunciou nenhuma de suas potencialidades. Nem mesmo o aspecto religioso foi renunciado, uma vez que ele considerava o Alcorão como a revelação do Profeta e sempre buscou conciliar as verdades filosóficas com sua fé. Dizia ele: "Todas as vezes que um problema me embaraçava, e que eu não podia encontrar o termo médio de um silogismo, retirava-me à mesquita, orando, e invocando o criador de tudo até que ele me revelasse a solução daquele fato" (p.18).
Tal relato de Ibn Sina é bastante interessante no que tange a relação entre Fé e Saber: podemos notar nitidamente que em seu pensamento não há nenhuma oposição entre ambos, mas sim complementaridade, quer dizer, a fé é instrumento de desembaraço, de iluminação de um caminho por ora obscuro e a oração é compreendida como via de acesso ao conhecimento verdadeiro. Essa situação contrasta com o contexto da recepção do pensamento de Ibn Sina no ocidente latino, principalmente em autores ligados a ortodoxia católica, que submetiam o conhecimento filosófico ao teológico - quando não mesmo o condenava, ao identificar alguma contradição entre a razão e a crença nas Escrituras. O ápice de tal situação é a figura de São Tomás de Aquino, leitor voraz de Ibn Sina, não obstante um ferrenho defensor da verdade revelada dos Evangelhos. Todo o projeto da Suma Teológica, por sua vez, reside em construir uma argumentação lógica e racional para justificar a fé católica, numa situação distinta de seu mestre árabe, onde existe uma coexistência de faculdades que torna o autor por vezes heterodoxo. Tal espelhamento é interessante no sentido de compreender a importância das condições históricas na produção do conhecimento: enquanto Tomás de Aquino vivia na Europa ocidental ruralizada, submetida a uma hierarquia institucional milenar, com crises políticas e econômicas sucessivas, Ibn Sina viveu na Idade de Ouro da dinastia Abássida, com grande florescimento cultural e econômico no contexto da consolidação do Califado, com grande liberdade de pensamento e incentivo aos pensadores e cientistas. Nenhum filósofo vive nas nuvens, como o senso comum insiste. Ibn Sina, portanto, foi das maiores expressões intelectuais de seu tempo, aparecendo como o grande sistematizador da falsafa.
No que tange a querela sobre a pretensa duplicidade do pensamento de Ibn Sina - um exotérico voltado ao público geral e cujas expressões seriam 'A Cura' e o 'Canon', e outro esotérico, restrito ao círculo de iniciados e cuja obra central seria a 'Filosofia Oriental', além de poemas e epístolas consideramos que há obras que parecem seguir a tradição peripatética e outras escritas em linguagem simbólica, qualquer intento de expor o pensamento verdadeiro de Avicena estaria fadado ao fracasso. Isso porque concebemos a identidade dos sujeitos históricos como multifacetada - longe de ser uma essência imutável -, e, como já afirmava o Filósofo "o ser é dito de muitos modos", quer dizer, a mesma coisa pode ser olhada por diversas perspectivas sem deixar de ser ela mesma. Ainda mais quando o objeto tratado é um pensamento tão complexo quanto o de Ibn Sina. Podemos conceber o aludido misticismo como mais um modo de dizer a mesma coisa: não há contradição alguma entre o Ibn Sina peripatético e o Ibn Sina místico. Se o próprio autor considerava que seu pensamento é digno de ser exposto das mais diferentes formas e em linguagens aparentemente opostas, não há motivo para se ignorar uma forma de exposição em detrimento de outra. A verdade é potente o suficiente para ser expressa de infinitas maneiras; mais proveitoso é desfrutar dos diversos estilos literários que um pensamento profundamente intuitivo alcançou. Ainda Guerrero: "Não há, pois, ruptura entre umas e outras obras, senão uma exposição distinta da mesma doutrina" (p.24).
As duas obras que melhor expressam o pensamento de Ibn Sina são ‘Al-Shifa’ (A cura), uma obra nitidamente de filosofia cuja matriz é a ideia de filosofia como cura da alma, onde a medicina e a psicologia tratam do corpo e da alma como unidades física e metafísica; e o ‘Canon de medicina’, obra que fundamentou o ensino da medicina em todo oriente médio e na europa até meados do século XVII, quando as ciências naturais e biológicas deram um salto epistemológico e em suas técnicas, o que não incompatibiliza o pensamento do filósofo, formulado no século XI, mas densamente povoado por intuições presentes até hoje em nossas práticas.
Al-Sifa (A cura), por sua vez, é uma obra enciclopédica, bem ao gosto do autor, que busca investigar o fundamento das ciências filosóficas, abarcando em seus quatro tomos a 'Lógica', as 'Ciências naturais', a 'Matemática' e a 'Metafísica', ou seja, todo o conhecimento que os antigos legaram ao seu tempo. A primeira destas segue a 'ordenação peripatética', ou seja, orienta-se pelo pensamento de Aristóteles e compreende 9 capítulos: Isagoge, Categorias, Peri hermeneias, Primeiros analíticos, Segundos analíticos, Dialética, Sofística, Retórica e Poética. As 'Ciências naturais" compreende 8 capítulos: A Física, O céu e o mundo, A geração e a corrupção, As ações e as paixões, Os meteoros, A alma, Os vegetais e Os animais. A "Matemática' compreende a geometria, a aritmética, a astronomia e a música. E a "Metafísica ou "Ciência divina" que trata da existência e do existente, Ética e Política.
A Filosofia primeira ou ciência divina é considerada a verdadeira Sabedoria por "fornecer o meio de verificar os princípios das demais ciências(...) e se investiga as causas primeiras da existência física e matemática, a causa das causas e o princípio dos princípios" (p.38). É a metafísica que fornece os princípios das ciências particulares, o que significa que ela é a mais universal e certa, já que todos os conhecimentos - a lógica, a física e a matemática - retiram seus princípios da ciência divina. Portanto, os inteligíveis primeiros são objetos de investigação desta ciência. E o inteligível mais imediato é o que concede unidade para todos os demais, a sua facticidade, o existente enquanto tal separado de sua existência sensível, portanto, a forma substancial do existente. Diz ele: “o existente não é um gênero nem um predicado igualmente ao que está abaixo dele. Mas é uma intenção na qual convém segundo anterioridade e posterioridade. Primeiramente o que é, a quididade que é a substância, depois o que vem depois dela” (p.61). O que vem depois é seu aspecto ontológico propriamente dito quer dizer, sua necessidade ou contingência. O existente, dessa forma, deve ser ou necessário ou possível, conforme queria Aristóteles. Entretanto, Ibn Sina prioriza o estatuto da necessidade do existente, ao modo neoplatônico. Diz ele: “o necessário indica uma afirmação da existência, e a existência é mais conhecida do que a inexistência, porque se conhece a existência por sua essência, ao passo que a inexistência é, de certo modo, conhecida por meio da existência” (p.62). Aqui, Ibn Sina parece retomar uma velha questão do Sofista de Platão, sobre a possibilidade de dizer o não-ser. Platão afirmava essa possibilidade, o que Ibn Sina nega, já que o inexistente é conhecido pelo existente. Dessa forma, o inexistente só possui existência ideal na mente humana.
Tal reflexão parece retomar a filosofia de Plotino sobre o Uno existente necessariamente e que fornece fundamento para os demais existentes, excluindo a contingência e possibilidade da metafísica. Portanto, o conceito central da Divina é o ser uno necessariamente existente – que poderíamos, precipitadamente, identificar com Deus, mas que empobreceria o edifício argumentativo, por resvalar numa teologia que parece não ser o objeto central de tais reflexões. O fio que provoca Ibn Sina a penetrar nas sutilezas da ciência divina é o aparente paradoxo que há no abismo entre o uno e o múltiplo. A questão é: “como é possível que, a partir do fundamento unitário da existência, se manifeste uma pluralidade de existentes? ” (p.65). Como fundamentar uma filosofia da unidade sem ignorar a multiplicidade do mundo? Segundo Ibn Sina, não há paradoxo algum. “A existência é uma só(...)Tudo, assim, é uma unidade(...)não pode ocorrer de que simultaneamente algo seja necessário por sua essência e tenha uma causa extrínseca à sua essência(...)É necessário que o existencialmente necessário seja uma única essência” (pp. 64-68). Embora os atributos do existencialmente necessário sejam múltiplos, sua operação inteligível se dá na unidade, uma vez que multiplicidade não necessariamente implica diferenciação. Nós só concebemos o existencialmente necessário ao inteligirmos seus atributos, o que quer dizer que a alma humana espelha a inteligência divina: “o existencialmente necessário é uma inteligência que intelige a si mesmo” (p.76). A doutrina da processão das inteligências, portanto, que será desdobrada na divina, possui uma inspiração nitidamente plotiniana.
Quanto ao 'Livro da alma', embora seja uma parte da enciclopédica Al-Sifa, a obras provocou grande impacto na posteridade latina. Não apenas por comentar Aristóteles, mas, sobretudo, por incrementá-lo. Ibn Sina está longe de ser um mero comentador do Filósofo; prova disso é a relativa autonomia que o livro seis de 'A Cura' obteve, denominado por alguns de a "psicologia de Avicena".
De fato, um espírito anacrônico poderia estranhar um livro sobre a alma residir na parte sobre as ciências naturais. Isso porque, no Ocidente cristão, o termo 'alma' ganhou uma conotação demasiado teológica, quase que como se a alma fosse o "aspecto imaterial do ser". Também o é, mas não somente. Nesse sentido, Ibn Sina é fiel a Aristóteles e consagra ao termo alma (nafs, psique ou anima) um aspecto naturalista, em função de a alma constituir o princípio ativo dos seres, aquilo que faz o inorgânico ganhar vida. Talvez não seja um erro muito grande afirmar que a distinção principal entre o de anima e kitab al-nafs resida justamente nisso: Aristóteles compreendia o ser humano como um ente privilegiado no interior da natureza, o ser por excelência que aplica seu conhecimento sobre a natureza; Ibn Sina, por sua vez, concebe o ser humano como constituindo a ordem cósmica, em estrita conexão com ela. Diz o Professor Carlos Arthur R. do Nascimento, no prefácio ao "Livro da Alma": "Ibn Sina o insere (o conhecimento humano) em uma visão cósmica e em uma hierarquia dos intelectos, indicando uma trajetória que constitui o percurso do ser humano em busca de sua realização, isto é, a felicidade, consistindo na união com o próprio intelecto agente e com a inteligência primeira" (p.8).

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