Dhiego Morais 30/03/2018O Livro e a EspadaInevitavelmente, ao longo do ano, entre os inúmeros lançamentos sedentos por roubar a atenção do público leitor, um ou outro livro acaba chegando de mansinho, sem qualquer alarde, sem incutir qualquer expectativa. Em certos momentos, pode vir mascarado por uma capa sóbria, ou até mesmo por um título que não diz muito sobre a própria história. De repente, enquanto o leitor desbrava a trama, uma sensação fantástica tende a florescer no seu âmago, sentimento este que, inesperadamente se transforma em surpresa, felicidade e gratidão. Sorrateiramente, esse tipo de livro enlaça o público e permite que as pessoas ali se entreguem à história. O Livro e a Espada pertence a esse grupo seleto.
Seguindo a minha proposta de que em 2018 eu me aventuraria em outros gêneros literários, que não somente literatura fantástica, assim como abriria mais portas para conhecer autores de outras nacionalidades e, principalmente, autoras; enfim, englobando leituras mais representativas, fiquei bastante interessado ao ver o lançamento da editora Arqueiro, escrito por um francês cuja obra havia sido indicada ao prestigiado e cobiçado David Gemmel Awards.
?O destino dos homens nunca passou de um murmúrio dos deuses?.
Em O Livro e a Espada, Rouaud apresenta aos seus leitores a história de Dun-Cadal Daermon, um general que um dia já tivera fama, poder e muita influência na corte do Imperador Reyes, de Massália. Antigamente, o seu nome era adornado de respeito, medo e reverência, porém, hoje, após a queda do Império e a instituição da República, Dun-Cadal não passava de um alcoólatra rabugento, fracassado e amargo. De general sagaz, se convertera a uma sombra infinitesimal do que já fora no apogeu de sua vida.
Viola é uma historiadora do Grão-Colégio de Émeris, que havia partido em uma missão de encontrar a figura de um antigo soldado da época do império, uma pessoa com as informações de que tanto ansiava: a localização da praticamente mística espada do Imperador, Eraed. Junto do Lieber Dest, o Livro do Destino, ambas configuram relíquias imperiais embebidas em contos cheios de misticismo e de um destino implacável, inexorável, cobiçados, claro, pela classe política e religiosa influente.
Ao passo que Dun-Cadal vive cada dia esperando que seja o último, em um tipo de lamento inaudível, de taverna em taverna, Viola representa todo o toque de perseverança, toda a suavidade das palavras e, principalmente, o eixo representativo da amizade e do saber. Viola, a historiadora, traz empatia não apenas à trama, mas diretamente ao leitor, que enxerga nela a ferramenta capaz de contrabalancear a história amarga do general.
Rã é mais uma personagem muito importante e que não deve ser esquecido, afinal, o garoto das Salinas tem um papel essencial em toda a história. Impulsivo, cheio de ira no coração e de um desejo inerente a sua própria alma de se provar para o mundo, o jovem tem um salto no seu desenvolvimento durante a história que poucos escritores conseguem desenvolver com tanta naturalidade ? isso para um livro de 400 páginas, apenas!
?Toda ferida acaba se fechando. Ficam as cicatrizes para nos lembrar de sua existência. E, embora a dor se torne menos intensa, nunca deixa de ser profunda?.
O Livro e a Espada é dividido essencialmente em duas partes, conduzidas e conectadas habilmente pela narrativa envolvente de Antoine Rouaud, que aproxima o leitor à história, tecendo cenários e personagens que definitivamente têm um porquê de estarem ali. Enquanto a primeira parte da obra é centrada principalmente em Dun-Cadal e Viola, a segunda leva ao público todo o dinamismo que poderia ter faltado a alguns leitores. Os últimos 25% do livro são alucinantes, recheados de uma carga dramática poderosa e dotados de diálogos belamente escritos.
Utilizando-se do recurso temporal, o autor reconta, apresenta a história de Dun-Cadal por meio de flashbacks, que, intencionalmente, e agradavelmente, se mesclam com o tempo presente, até que um não prejudique a narrativa do outro. Embora bastante usados, os flashbacks não agridem o enredo, muito pelo contrário, dão sustento, fundamentam o estilo narrativo de Rouaud, que permite a quem lê observar de perto como se sucedeu o declínio do Império, a instauração da República e a fragmentação do ser de Dun-Cadal.
O cenário desenvolvido pelo autor ? Massália, como um todo, e as Salinas e Émeris, mais especificamente ? é bem delineado, ainda que fique em segundo plano quando o assunto é a relação, a conexão entre as personagens. Por outro lado, um ponto ainda mais positivo é o sistema de magia que envolve O Livro e a Espada: o Sopro. Mesmo não sendo um método muito complexo, é evidente que a simplicidade do Sopro, que permeia o mundo e envolve os pulmões, enchendo-os de ar e de traços de magia, fulgura como chama-mestre, como farol, capaz de realimentar o corpo, de norteá-lo, ou ainda mesmo, consumi-lo.
?Chega um dia em nossa vida, o cruzamento daquilo que fomos com aquilo que seremos. Nesse momento, ao término de tudo, é que decidimos qual será o nosso fim. Com orgulho ou vergonha da trajetória percorrida?.
Enquanto Rouaud guia os seus leitores, aparentemente, por uma história no estilo narrativo de A Canção do Sangue e O Nome do Vento, como uma contação do passado pelo próprio personagem (Dun-Cadal, no caso), a fim de cruzar os fatos com o presente, o autor também é capaz de entregar um livro extremamente poético, cheio de significados, de reflexões, que tingem de sentimentalismo as páginas, ao mesmo tempo em que entrelaça leitor e personagens.
O Livro e a Espada é um romance de literatura fantástica inicial invejável. Trata-se de uma história, sobretudo, a respeito de identidade, sobre quem nós éramos, quem nós somos e quem nós seremos, embora verse igualmente sobre lealdade e memória. Rouaud consegue desenvolver uma obra capaz de interligar uma escrita bela e cheia de significados, esboçados principalmente em seus diálogos, a personagens cativantes que contracenam em um mundo em que a magia vive no Sopro. O Livro e a Espada é sobre até onde somos capazes de ir para resgatar o que agora se encontra estilhaçado em nossa alma.