Abduzindolivros 16/04/2024
Que desfecho excepcional para uma trilogia que é cara do Brasil e de todos os brasis que o compõem! Erico Veríssimo foi rei nesta obra!
Rodrigo Cambará retorna a Santa Fé após a renúncia do presidente Getúlio Vargas, seu amigo. Os mexericos que envolvem esse filho icônico do Rio Grande são fomentados com a presença de sua amante de vinte anos. Numa noite de amor com a jovem, Rodrigo sofre um infarto e, acamado, terá a oportunidade de se reconciliar com seu passado e, sobretudo, com o presente ? principalmente na figura do filho Floriano.
Essa leitura me despertou muitas emoções. Durante boa parte, lidei com o cansaço de ler as repetições das brigas políticas que os machos de Santa Fé se envolviam. Estava de saco cheio da instabilidade, das traições e da arrogância do Rodrigo. Tudo o que eu admirava no Capitão Rodrigo parecia ter se esvanecido só em defeitos no seu bisneto homônimo; mesmo as boas ações se perdiam na quantidade de cagadas que o homem fazia.
Contudo, os capítulos finais amarram o propósito de toda essa ?enrolação? envolvendo Rodrigo. Conforme o desfecho da história se aproximava, as divagações de Floriano Cambará se faziam mais presentes, e a partir do olhar crítico do filho mais parecido com os Terra e os Quadros, conheci melhor a figura do Rodrigo, pude compreendê-lo e aceitá-lo. A cena de acerto de contas entre pai e filho, na qual Floriano finalmente toma coragem para falar sobre como as atitudes de Rodrigo o afetaram durante a vida foi algo magnífico de ser. Foi um diálogo revelador, simples e muito hábil.
Naquelas páginas, o autor despertou tantas emoções em mim, como leitora e pessoa... Além disso, fiquei mais uma vez deslumbrada, enquanto escritora, com a capacidade do Erico Veríssimo em escrever dois personagens tão diferentes, profundos, cheios de peculiaridades, tendo um diálogo que se aproxima da realidade tanto quanto poderia se aproximar sem perder o valor literário. Sem dizer uma palavra que me apontasse nessa direção, o Erico me mostrou que toda a repetição das mesmas cenas, dúvidas e más decisões de Rodrigo serviram para que ali, naquela cena, eu também me reconciliasse com o personagem e pudesse aproveitar o tempo para observar algumas coisas em mim mesma.
É um ?mal? dos escritores, leitores e introvertidos se parecerem tanto com Floriano Cambará. Se você se enquadra nessa categoria, recomendo que leia este livro e preste atenção em cada nuance e observe a si mesmo. A identificação com o personagem foi forte; e imagino o quanto do Erico deve ter se soltado para compor esse escritor fictício...
Outra parte final que contribuiu muito com a história foram os diários de Silvia Cambará, esposa de Jango (um dos filhos de Rodrigo). Contudo, o rapaz que ela realmente amava era Floriano que, apesar de correspondê-la, por omissão permitiu que ela se casasse com outro. Além de ter sido uma parte muito significativa, foi uma delícia de ler e comprovou mais uma vez a habilidade do Erico em dar vozes diferentes para seus personagens.
A profundidade dos personagens é tão evidente que fica difícil de acreditar que não tenha existido, de fato, um Rodrigo Cambará na Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro em meados das décadas de 30-40. Colocados ao lado de figuras históricas reais ? Getúlio Vargas, Borges de Medeiros, Luís Carlos Prestes, entre outros ? os personagens desse romance histórico saltam das páginas e ajudam a delinear melhor o que foi a história do Rio Grande do Sul e do Brasil sem a maquiagem que pinta esses heróis somente por umas poucas virtudes, além de ressaltar o papel de homens desconhecidos nesses momentos. O papel das mulheres nas revoluções foi afirmado diversas vezes neste livro. A desigualdade social gerada pelas decisões dos poderosos pensando somente nos seus interesses também foi enfatizada.
O Erico escreveu o retrato do nosso país, sem tirar nem pôr, inclusive considerando o cenário mundial da época. O último volume da trilogia ?O Tempo e o Vento? se passou durante a ascensão do nazismo e de outros regimes fascistas na Europa, e é claro que tal pensamento se propagou aqui no Brasil. Foi chocante ? porém não surpreendente ? ler este livro em 2024 e ver os mesmos pensamentos, a mesma lógica sendo reproduzida em discursos políticos tão recentes. Por isso eu afirmo que esse livro deveria ser lido, estudado e cobrado muito mais nas escolas. O Erico Veríssimo prestou um papel importantíssimo para nossa sociedade ao escrevê-lo, e é um desserviço que essa obra seja tão pouco conhecida, considerando a sua importância.
Não afirmarei que é um livro lento porque talvez isso se deva ao meu ritmo de leitura neste mês, mas é fato que o Erico produziu um calhamaço com muitas cenas que parecem repetidas. Só que, como eu já disse, tudo o que ele escreveu tem seu propósito e ficou muito bem amarrado no final. Foi sublime, lindo, delicioso de ler, uma obra-prima que é incompreensível que não seja mais reverenciada, lida, estudada, porque ?O Tempo e o Vento? é tudo: é história, é psicologia, língua portuguesa, escrita criativa, um prato cheio para várias áreas!
Recomendo fortemente, e com certeza irei reler mais vezes durante a minha vida. Espero viver o bastante para revisitar Santa Fé até decorar suas ruas e nomes ilustres, amei!!!