Coisas de Mineira 05/11/2018
“Há uma terra dos vivos e uma terra dos mortos, e a ponte é o amor, a única relíquia, o único significado”.
~ Thornton Wilder
O Urso é um thriller psicológico que a Bertrand Brasil lançou nos últimos meses, onde a narração é feita na voz de uma criança de cinco anos, uma garotinha chamada Anna. A autora Claire Cameron trabalhava em um parque em Toronto, onde nos anos 90, um casal foi atacado por um urso-negro – caso que ficou muito conhecido e ganhou grandes proporções; para a autora o casal estava simplesmente no lugar errado e na hora errada. Não existia culpados. Assim, dessa forma, ela se inspirou nessa ocorrência para contar sua história. Aqui, falaremos sobre perda, sobre sobrevivência, amor e luto.
Então, conheceremos a fundo nossa protagonista: ela se chama Anna Whyte, e está acampando com seus pais e seu irmão Alex, que tem quase 3 anos, na Ilha Bates – Lago Opeongo, no Parque Algonquin. Para ela o Grude – porque ele vive melecado com alguma coisa – é como se fosse um bebê ainda, pois ele é todo rechonchudo e ainda fala aquela língua típica e enrolada das crianças pequenas. Durante uma das noites as crianças ouvem alguma confusão do lado de fora da barraca onde estão abrigados, e a menina pensa que o pai poderia estar bravo com eles (por não terem sido bonzinhos, sem ao menos saber o que poderia ter feito de errado).
“Os olhos dela mandam a tristeza pros meus e deixam escorrer até o meu coração...”
Em seguida eles são retirados às pressas do abrigo da barraca e encerrados dentro de um compartimento de alimentos que Anna chama de Coleman, a marca do produto. Ela e Alex não entendem o que está acontecendo, porém ficam quietinhos conforme lhes foi pedido, e aguardando o retorno do pai com novas instruções. A ingenuidade da narrativa, pela simples visão de mundo de uma criança, nos leva ao extremo de nossas emoções. É muito complicado digerir a história que vamos prevendo ao longo de cada página. Pois, inevitavelmente se dá o envolvimento emocional com a aventura que as duas crianças passam a viver em um lugar totalmente desconhecido e ermo.
A verdade é que o acampamento dos Whyte foi atacado por um enorme urso-negro. A confusão que Anna ouviu durante a noite, foi o momento que seus pais estavam sendo alvos da investida do animal. Quando colocados no Coleman por seu pai, as crianças ganharam a chance de sobreviver sem serem vítimas de tão devastador acontecimento.
As crianças acabam dormindo e passando a noite naquele compartimento, e mesmo que o urso tenha investido contra o objeto, não conseguiu que ele se abrisse. A tática do pai foi sua última atitude em favor da família, e que atingiu seu objetivo. Quando o dia amanheceu, Anna e Alex saem de dentro do Coleman e começam a buscar por seus pais. Sentem fome, mas não entendem o porquê de toda aquela bagunça. A menina avista por ali um pé de tênis de seu pai – sem se dar conta que a perna decepada estava acompanhado o calçado – mas segue em busca de sues progenitores.
“O sol brilha muito, tem árvores em todo lugar, com trechos na sombra entre elas, e eu não vejo nada conhecido.”
Grude e a irmã encontram a mãe ainda consciente deitada no chão. A mãe orienta a menina a colocar o seu irmão na canoa da família e seguir para um lugar seguro. Ela está gravemente ferida, e Anna percebe que algo não está correto, contudo, não tem maturidade o suficiente para lidar com os fatos ali expostos. Nós leitores sim! E o coração aperta – mais pela situação vivida pelas crianças, sozinhas em uma selva cheia de perigos, e menos por tensões na trama propriamente dita.
O livro proposto por Cameron não é um livro fácil de escrever. Tentar contar uma história de quase 300 páginas levando em conta somente a narrativa de uma criança tão nova pode ser algo muito desafiador, e talvez não alcance o propósito almejado. Muitas das vezes a mente de Anna divaga para acontecimentos do passado ou, para situações fantásticas. Embora saibamos desde as primeiras páginas o que de fato aconteceu com aquela família, ficamos a todo tempo enlaçados com as expectativas da menina em encontrar os pais, em não estar no ponto de encontro correto, em se sentir culpada por não ter sido uma “menina boa”, e coisas do tipo.
Ao saírem da ilha onde estavam acampados, Anna e Grude começam um período crucial para a sobrevivência de ambos. Com meu espírito materno, vejo com todo desespero do mundo como a mãe deles foi corajosa em enviá-los a essa jornada, buscando deixa-los longe do acesso do grande urso (que a menina chama de cachorro preto).
Assim sendo, com sua ursa de pelúcia Gwen a tiracolo, Anna guia seu pequeno irmão pela primeira vez sem a supervisão dos pais. Em vários momentos ela relembra que não é ‘a babá’, que ela ainda é muito nova para fazer essa ou aquela coisa por Grude, mas conforme o tempo vai passando (e a falta da família unida vai chegando) a garota se apega muito mais a Alex e deixa aquelas pequenas rixas típicas de irmãos de lado.
“Ele responde que o que você tem é sempre melhor do que você imagina na sua cabeça, então tem que ter cuidado com o que se deseja porque pode virar verdade e pode ser horrível.”
Eles passam frio, sentem muita fome, e chamam pelos pais. Anna inventa formas de proteger a si e a seu irmão fazendo uma lança com um galho, busca um esconderijo dentro de uma árvore para passarem a noite, e finge que uma poça de lama é achocolatado – para assim não morrerem de sede. Mesmo sem entender praticamente nada do mundo “real”, as duas crianças sobrevivem a todos os prognósticos negativos.
Com descrições fortes – acredito que por seus anos trabalhados no Parque Algonquin, em Toronto – Claire Cameron contou-nos uma história muito triste, que desenvolve por quase todo o livro até chegar a um momento onde é quase que exigido certa maturidade dos pequenos protagonistas. Lidar com uma nova formação familiar, e com as formas e atitudes diferentes no seu dia-a-dia exige muito do psicológico de crianças, principalmente em pessoas tão novas que passaram por momentos tão traumáticos.
Acredito que a autora nos entregou uma personagem muito inocente, idealizadora e criativa. Anna, com seus cinco anos de idade, praticamente não identifica o que aconteceu com seus pais, ou que o “cachorro preto” é um feroz urso-negro que devastou metade de sua família. Ela não sabe o que é a morte, e não entende que suas pequenas disputas com Grude é uma disputa unilateral – ele não está nem aí. Mas, tudo isso passa. Anna e Alex seguem em frente...
“- Ah, eu aqui sentindo pena de mim mesmo por tudo o que perdi – diz vovô. – E veja só tudo que ganhei.”
A editora optou por uma capa escura, com tons em preto e vermelho, que deixa transparecer o sentimento de estarmos perdidos em uma selva desconhecida sem qualquer responsável que possa nos acolher. A edição brochura ficou muito bonita, trás o título do livro e a silhueta dos dois irmãos, e a simulação de algumas manchas de sangue e arranhões. Em 256 páginas de folhas amareladas, a fonte é bastante confortável para leitura, e a editora optou por uma diagramação simples, sem floreios.
Cameron nasceu em Ontario (Canada) e tem 45 anos. É escritora e jornalista, com três obras publicadas – porém somente O Urso foi traduzido para o português. Trabalhou como instrutora no parque que lhe serviu como inspiração para essa trama. Ela vive em Toronto com seus dois filhos e marido.
Por: Carol Nery
Site: http://www.coisasdemineira.com/2018/11/resenha-o-urso-claire-cameron.html