Maria - Blog Pétalas de Liberdade 25/03/2019Resenha para o blog Pétalas de LiberdadeNa obra, uma espessa neblina dominou o mundo, a névoa não permitia ver nada pelas janelas. Quem tentava sair de casa ou não voltava, ou voltava sem partes do corpo. Dentro das casas, as pessoas viam a comida acabar dia após dia, viam a vida se esvaindo.
"Não posso dizer em que parte do mundo isto começou, aparentemente a energia emitida causa algum tipo de 'pane' nos nossos aparelhos eletroeletrônicos, e interferências em linhas telefônicas e ondas de rádio, deixando cada região afetada incomunicável com o mundo." (página 35)
No livro temos relatos de sobreviventes apresentados de diversas formas. Já que as telecomunicações pararam de funcionar, alguns escrevem cartas para os entes queridos que estavam do lado de fora e não voltaram para casa. Outros conversam consigo mesmo, escrevem diários e poemas. Alguns continuam o trabalho que faziam antes da neblina surgir: fazem relatórios sobre o que sabem ou imaginam. Uns têm certeza de que não vão aguentar mais e deixam suas últimas palavras. Outros ainda tem esperança e acreditam que alguma hora a neblina se dissipará ou que alguém vai aparecer para resgatá-los.
"Preciso fazer um diário. Um registro de como acredito que podemos ser uma esperança. Uma luz que está pulsando dentro de nós, dentro de cada um, dentro de mim." (página 140)
Em abril do ano passado, li os primeiros capítulos do livro para fazer um post de primeiras impressões para a campanha de lançamento da obra. Aquelas páginas inicias me encheram de teorias sobre o que teria causado a neblina. Talvez fosse o resultado das bombas que caíram na época, parte de uma guerra entre países com o uso de armas nucleares, talvez fosse o apocalipse, ou culpa da poluição, talvez houvessem monstros sobrenaturais que aproveitavam a neblina para se aproximar?
Esse ano, retomei a leitura de "Nihil" temendo que a Carolina não fosse nos dar as respostas para tantas questões levantadas pelos primeiros capítulos e continuasse trazendo apenas os relatos angustiantes dos que sobreviviam até aquele momento. Felizmente, esse meu temor não se concretizou. Temos sim uma explicação para o que a névoa causa nas pessoas, além de informações sobre como a sociedade chegou naquele estado, e mais do que isso, os autores dos relatos que me pareciam não ter ligação nenhuma uns com os outros, vão sim se interligar em alguns momentos, fazendo com que "Nihil" não seja um compilado de depoimentos soltos, mas uma história com começo, meio e fim, ainda que nublados pela névoa.
"Mas eram bombas, não? Então acreditei que seríamos salvos em algum momento. Haveria uma resistência, pois sempre há. Mas faz tempo demais que as bombas cessaram e ninguém apareceu. E agora somos só nós três. Sim. Três.
Sinto muito, querida, mas Gustavo e Gabriela se foram cedo demais. Sucumbiram a inanição, à loucura, ao sufocamento talvez. O que eu vi, Lígia, foi mais febril que o inferno. Vi fumaça, ou seja lá que inferno é isto, por debaixo da porta dos meninos. Tapei a boca e o nariz e entrei. Eu deveria ter pregado a janela, e o fiz. Mas nossos filhos sempre foram crianças espertas. Os pregos foram retirados um a um, talvez por dias, sem que percebêssemos.
Na minha frente seus bracinhos e perninhas explodiram." (página 46)
A Carolina conseguiu dar vozes distintas aos seus personagens, desde o homem que precisa tomar uma difícil decisão pela sobrevivência da esposa, passando pela avó que se espanta com o fato de os netos ainda conseguirem encontrar carne, até a mãe que vê a filha voltar para casa e isso não dá fim à sua preocupação. E é interessante como podemos nos identificar um pouquinho com cada um desses personagens e seus dilemas.
Se fosse você, sabendo que não teria como comprar mais comida ou água, abriria a porta quando alguém batesse e abreviaria o seu tempo de vida para não definhar sozinha? A decisão da personagem que passou por essa situação nem de longe é tão revoltante quando a de certas pessoas que se acharam no direito de manipular muitas outras ao invés de assumir a sua incapacidade de lidar com a questão da neblina. Fechei o livro indignada, pensando em quanta coisa poderia ter sido diferente, em quantos mais poderiam ter sobrevivido e como o sofrimento poderia ser menor se o direito à informação não tivesse sido arbitrariamente tirado. Mas terminei também encantada pela importante mensagem que a história passa, e que vocês descobrirão se fizerem essa leitura.
"- Se existisse algo tóxico lá fora, algum cientista poderia descobrir uma cura e teríamos uma chance.
- Ora, quanta estupidez. Estamos velhos! Não teríamos uma chance nem mesmo antes dessa neblina cinza devorar tudo: nossos corpos, nossas almas. A sociedade nunca gostou de velhos, nem de crianças. Crianças choram, velhos reclamam.
- Mas nós éramos jovens antes da neblina...
- Ainda éramos.
- E tudo poderia ter sido...
- Que diferença faz? O mundo também nunca gostou dos jovens. Homens e mulheres querem se manter jovens, mas odeiam a juventude, odeiam o barulho, a rebeldia, a contestação.
- Nós não éramos assim. Contestadores. Éramos assustados, cheios de desejos de consumo, cheios de tristeza, cheios de certezas conservadoras...
- Então não éramos jovens." (página 100)
A edição da Estronho está muito caprichada, com capa soft touch (textura aveludada), páginas amareladas, poucos erros de revisão, diagramação com letras, margens e espaçamento de bom tamanho e muitos detalhes de ilustrações e fontes diferentes.
Talvez alguns de vocês se lembrem de "Caixa de Pássaros" ao ler minha resenha de "Nihil", e acho que ambos os livros se encaixam nos mesmos subgêneros: drama, thriller psicológico, suspense, terror, ficção pós-apocalíptica, distopia; porém, em comum, eles têm apenas a existência de "um perigo lá fora", sendo bem diferentes quanto ao enredo. Só vi o filme de "Caixa de Pássaros", mas pelo que li sobre o livro, acredito que o final de "Nihil" vá ser mais satisfatório para os leitores por trazer mais explicações e também uma reflexão que nos é muito útil.
"Nihil" foi uma leitura rápida que me surpreendeu positivamente e da qual gostei muito. A narrativa da Carolina me cativou e me despertou emoções e me fascinou com a criação dessa neblina que parecia ser uma prisão para as pessoas. É um livro que fechei com aquela vontade de voltar à primeira página e ler tudo novamente para visualizar a trama com ainda mais clareza. Recomendo muito que leiam "Nihil", um nacional muito original, criativo e inspirador.
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