spoiler visualizarMateus Rameh 23/08/2020
A experiência fragmentada
O que mais me chamou atenção em Vidas Secas é como Graciliano Ramos escreve uma experiência que apreende a realidade de forma fragmentada. Fabiano, sem instrução formal, é um bruto, um bronco e essa sua característica é trabalhada no cerne da estrutura narrativa. Ele é um homem que não consegue ir além das coisas objetivas porque, para sobreviver, sempre teve de estar atento às necessidades imediatas do seu arredor, ou então padeceria no implacável sertão. Assim, seu fluxo de pensamento é bastante direto, curto, duro, escrito com muitos pontos finais entre as frases, mais do que com vírgulas ou conectivos, porque ele não consegue articular extensas elaborações. É dessa forma que ele vai, aos trancos e barrancos, tentando formular um pensamento, chegar a uma conclusão, entender os motivos subjacentes que o colocam na posição subordinada aos outros, privado de liberdade, como um animal servindo a seus donos. Muitas vezes com repetindo o pensamento ou a frase para se convencer de que está pensando algo pertinente, como se, na repetição, tal pensamento se tornasse cada vez mais concreto e verdadeiro. No final do capítulo festa, quando os meninos olham as novidades que se apresentam diante deles, pensam que aquelas coisas provavelmente teriam nomes, mas não os conhecem e "Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas". A carência da educação formal para Fabiano e Sinha Vitória faz com que eles tenham dificuldade em proceder com o olhar questionador das crianças, o momento de maior potencial de aprendizado e definidor de como aquela pessoa se desenvolverá no mundo: caso seja ensinada, terá mais chance de ser livre e autônoma, caso for tolhida e repreendida, como são os meninos por Fabiano, ficará confusa e vulnerável aos interesses dos urubus. A ausência do conhecimento e das ferramentas para se identificar o mundo os separa da realidade em si e os assusta como a uma cachorra, tensa com a barulheira das festividades. Não que as pessoas que recebem essa educação estejam completa e absolutamente conectadas e à par da realidade, não é isso, ela é múltipla e complexa, mas para aqueles que carecem de noções basilares como os personagens de Vidas Secas, o abismo torna-se ainda mais profundo.
Ainda nesse sentido, em maiores escalas, essa noção de fragmentação se dá também nos parágrafos e capítulos do livro. Ao longo dos parágrafos, os personagens mudam abrupta e subitamente de ideia ou de humor, reagem de maneira desmedida, numa impulsividade quase animal, refletindo apenas depois se deveriam ter feito aquilo ou não, inseguros. Nos capítulos, isso se dá também numa aparente descontinuidade, não vemos logo de cara as consequências de um capítulo no seguinte, muitas vezes parecendo que um está à parte do outro. Por exemplo, depois do capítulo Cadeia, vem Sinha Vitória e esperamos que ela fale ou reflita sobre a prisão do marido, mas isso nem é mencionado. Ou por exemplo quando, repentinamente, Baleia aparece moribunda em seu capítulo, quando o processo até chegar a esse ponto não tinha sido mencionado. Novamente, isso ocorre porque os personagens têm de se preocupar com suas necessidades imediatas de sobrevivência, por vezes apenas encontrando tempo para matutar sobre o que aconteceu muito depois, reforçando o senso de urgência que os acomete, já que não têm tanto controle das situações e têm de lidar com suas consequências.
É nessa relação simbiótica e intrínseca entre forma e conteúdo que mora o meu fascínio por Vidas Secas. Meu capítulo favorito foi, de longe, Baleia. É um grande livro e, com essa construção, deixou marcadas suas imagens em mim. Certamente valerá uma revisita.