Ana Paula 10/02/2022
Os retirantes
O olhar de desespero, o grito mudo de socorro, a secura do mundo externo e a aridez de um mundo interno sobrepujado, humilhado, rebaixado a condição de sobrevivência. Foi esta a miscelânea de sentimentos que me arrebatou quando há muito tempo atrás tive contato com a obra do ícone das artes plásticas, Portinari. Sua obra “Os Retirantes” causou em mim profundas marcas, sensibilizou-me de modos que não havia nem tomado consciência. Há alguns meses atrás tive um pesadelo com estas imagens assustadoramente reais e cruéis da família de retirantes retratada por Portinari. A impressão de assombro que o sonho causou me fez acordar com o coração agitado e o espírito desolado. Não sei porque sonhei com isto na ocasião, confesso que a obra de Portinari já não cruzava minha mente durante muitos anos. Fato é que sonhei e este sonho me impulsionou a ler o livro que venho resenhar hoje, Vidas Secas de Graciliano Ramos. Tinha uma noção geral da obra, graças as aulas de literatura na escola, talvez por isso relacionei de imediato sonho-pintura-livro. Foi neste espírito sedento que mergulhei na secura do sertão e nas misérias da família retratada em Vidas Secas.
Na novela Vidas secas, muitas vezes comparada a quadros de uma exposição dado ao caráter relativamente independente dos capítulos, acompanhamos um período - de tempo indeterminado - da vida de Fabiano (o pai), Sinha Vitória (a mãe), os dois filhos inominados (o menino mais velho e o menino mais novo) e da cachorrinha, ironicamente chamada, Baleia. Nesta grande obra da nossa literatura nacional, Graciliano, na postura de um narrador em terceira pessoa, comove o leitor e o sensibiliza na medida em que é preciso em sua linguagem e ambientação, que é seca e dura. Vidas Secas é o melhor título possível para esta história, e é resumitivo: este é um livro sobre vidas secas. Secas pelo mundo exterior e secas pelo mundo interior, que é tantas vezes atrofiado pelas emergentes necessidades e instintos de sobrevivência. Não chorei durante a leitura, porém ao fechar o livro finalizado fiquei encarando a parede de meu quarto e minhas lágrimas vieram desesperadamente para compensar a secura e amargura que se instalou em mim durante a leitura.
Há tanto o que se falar sobre esta obra publicada em 1938, a questão sócio/econômico/ambiental da seca, a indústria da seca, a relação de exploração do trabalho, os mecanismos sociais de manutenção de uma hierarquia social perversa, etc etc. Entretanto, o que quero compartilhar é minha percepção sobre um dos meus capítulos favoritos, “O mundo coberto de penas”. Neste capítulo temos uma das cenas mais tocantes que já li: a manifestação de uma revolta cultivada longa e paulatinamente. Fabiano ao entender, depois da percepção de Sinha Vitória, a relação entre as arribações (por extensão, referência a aves migratórias, retirantes) e a seca, se revolta contra estas aves, que simbolizam tudo aquilo que lhe é maior, especialmente a natureza, que em essência não é boa ou má - apenas o é, porém que repercute na vida humana muitas vezes de forma impiedosa. Outra ave que aparece neste livro são os urubus, os mensageiros da morte, que também estão presentes na impactante obra de Portinari, “Os Retirantes”.
Repleto de monólogos, Vidas Secas, desumaniza os humanos e humaniza os animais (especialmente Baleia). Um destes monólogos, de Fabiano para Fabiano, logo no começo do livro, dá o tom da narrativa e é especialmente profundo e tocante:
“- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. (...) Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: - Você é um bicho, Fabiano.”
A arte tem esse poder de nos sensibilizar, tocar em nossas feridas, gerar questionamentos. A arte, como disse Nietzsche, “torna a vida suportável”. Dito isso, reitero minha recomendação da leitura de Vidas Secas e da apreciação de Os Retirantes.