Pietra Galutty 27/01/2023
Relações sociais, o preço do conforto e a parte sombria de soluções milagrosas: a ficção especulativa de Margareth Atwood
Margareth Atwood (1939-) publica o seu "O Coração é o Último a Morrer" (The Heart Goes Last, 2015) como mais um expressão de toda a sua genialidade. Nesta ficção, um colapso econômico e social de grandes proporções abalou o mundo, milhares de pessoas perderam os seus empregos e a miséria é realidade de grande parte da população - com exceção de alguns poucos privilegiados. Passamos a acompanhar Charmaine e Stan, um jovem casal em um mundo em colapso, que por falta de recurso, após perderem ambos os seus empregos, são obrigados a morar no carro expondo-se a riscos, criminosos e a uma realidade aterrorizante.
"Depois, tudo desandou. Como se tivesse sido de um dia para o outro. E não apenas em sua própria vida pessoal: todo o castelo de cartas, todo o sistema desmoronara, trilhões de dólares evaporados dos balancetes como neblina de uma vidraça" (pg. 19).
Assim como em obras anteriores, Atwood retoma a criação de um universo distópico. Apesar de uma realidade aparentemente futurista, as premissas não são tão distantes da nossa: no livro, o casal Charmaine e Stan, cansados do sofrimento da realidade em que vivem em razão do colapso econômico, resolvem aderir ao Projeto Positron - uma alternativa supostamente criada para combater a escassez de recursos e a miséria. As cidades gêmeas de Consilience e Positron oferecem moradia, trabalho, alimentação, segurança e estabilidade para aqueles que escolhessem aderir ao programa. Com um pequeno detalhe: uma vez aceitos, não poderão mais sair. Conscientes da vitaliciedade do contrato com a Positron, Charmaine e Stan resolvem atender à permanência - são livres para escolher, mas não são livres para mudar de escolha.
O Projeto consiste na vida em sistema de rodízio, de modo que cada pessoa vive um mês como pessoas/civis normais e livres na cidade de Consilience, e o outro mês como prisioneiros na prisão Positron. Quando entram na prisão, sua casa é habitada por Substitutos, que são outros moradores de Consilience, que ficam assim alternando sua moradia entre a casa e a prisão. Todo conforto é oferecido, no entanto, a ninguém é permitido qualquer contato com o mundo exterior e a vigilância é constante. Toda a premissa parece a vida perfeita diante da realidade em que vivem, a princípio, Charmaine e Stan, mas como é dito por uma amiga de Charmaine em determinada passagem: "não existe almoço grátis". A verdade por trás de Consilience pode ser ainda mais assustadora.
"(...) afirmam que Consilience/Positron é uma violação das liberdades individuais, uma tentativa de controle social total, um insulto ao espírito humano. (...) Você não pode comer suas chamadas liberdades individuais, e o espírito humano não paga contas, então algo precisava ser feito para aliviar a pressão dentro da panela de pressão social". (pg. 58).
"(...) sem dúvidas há olhos por toda parte - no poste de luz, no hidrante de incêndio. Só porque você não pode vê-los, não significa que eles não possam ver você". (pg. 129).
O Coração é o Último a Morrer retorna ao universo das ficções especulativas de Atwood. A autora utiliza o termo "ficção especulativa" em contraposição à "ficção científica", a qual descreve universos impossíveis de acontecer. As realidade de suas obras poderiam sim acontecer, quem sabe em um futuro próximo, e suas inspirações estão em fatos e acontecimentos da vida real. Na obra, Consilience se inspira na máxima do utilitarismo que busca a maior felicidade para o maior número de pessoas.
"Qual é um dos objetivos aqui: máxima felicidade possível. Quem não marcaria essa opção?" (pg. 63).
É justamente na aparente tranquilidade de Consilience que o relacionamento de Charmaine e Stan começa a ruir: antes, apesar das dificuldades, eles tinham um ao outro. Aqui, esse relacionamento passa a ser instável - traição e mentiras serão passam a formar um triângulo amoroso com o jovem casal.
"(...) seja quem for que esteja em sua companhia, o outro está lá com ela também, invisível, participando, embora em um nível inconsciente. Inconsciente para ele, mas consciente para ela, porque ela mantém os dois em sua consciência, muito cuidadosamente". (pg. 127).
A narrativa alterna entre as perspectivas de Charmaine e Stan, sempre na terceira pessoa - esse é um estilo particularmente interessante que a autora encontra para contar essa história. Assim, a narrativa se desdobra em duas perspectivas, os dois lados de uma mesma moeda. É uma narrativa amplamente não linear.
Absolutamente fantástico, em O Coração é o Último a Morrer a crítica social é muito clara: quanto vale a liberdade? A venda da alma/humanidade por dinheiro tem consequências irreparáveis, permanente - ainda assim, muitas pessoas estão dispostas a pagar esse preço.
Sob a perspectiva de Stan:
"Ele não deveria ter se deixado enjaular ali, privado da liberdade. Mas o que significa liberdade hoje em dia? E quem o havia enjaulado e isolado? Ele mesmo o tinha feito. Tantas pequenas escolhas". (pg. 206).
Sob a perspectiva de Charmaine:
"Não importa, ela diz a si mesma. Pense em flores, porque agora você está segura. Só que ela não está segura. Talvez ninguém jamais possa estar seguro. Você corre para o seu quarto, bate a porta, mas não há nenhuma fechadura". (pg. 269).
Gosto de imaginar que Atwood escreveu esse livro também como um alerta ao peso de escolhas, das quais não se pode voltar atrás. Que o futuro é construído pelas escolhas que tomamos, como uma estrada com vários caminhos dos quais escolhemos apenas um. Por vezes, escolhemos errado.
"O passado é muito mais seguro, porque o que quer que esteja nele já aconteceu. Não pode ser mudado; portanto, de certa forma, não há nada a temer". (pg. 256).