Lucas 11/04/2022
Narrador hilário e enredo absurdo: Uma sátira espetacularmente bagunçada
Almas Mortas, lançado em 1842, é a obra-prima do genial Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852), nascido na atual Ucrânia mas considerado um dos membros fundadores (o outro é Aleksandr Pushkin (1799-1837)) da era de ouro da literatura russa (impossível não ignorar esse dualismo pátrio diante do conflito atual entre Rússia e Ucrânia). O rótulo de obra-prima de um autor tão renomado não deriva de sua incompletude, comentada mais a frente, mas pela narrativa daquilo que o autor propôs (e conseguiu, em grande parte) legar à eternidade literária.
Como um traço recorrente das obras-primas, têm-se a simplicidade, a qual em Almas Mortas é encontrada em seu enredo: o livro narra as aventuras de Pável Ivánovitch Tchítchikov, um sujeito (é o melhor substantivo que pode ser empregado) que parte para uma interiorana cidade russa com um objetivo em mente: adquirir de proprietários de terras títulos de propriedade de servos falecidos desde o último recenseamento e que, portanto, em termos jurídicos ainda existiam. As tais "almas mortas" seriam como "títulos podres": investimentos com substância apenas legal, conferindo ao seu titular certa riqueza fictícia, mas inexistente na prática.
Em verdade, este é um enredo tão simplista que, de certo modo, não pode ser considerado um enredo propriamente dito. Não apenas simples, mas como fica subentendido, a proposta de Almas Mortas é absurda e chega (ria) a ser esdrúxula se dependesse de uma eventual falta de imaginação do seu idealizador. Felizmente, não é isso que ocorre: Gógol era um homem com uma mente turbulenta e a história de seus livros indica que para ele qualquer coisa trivial poderia ser o gatilho para outras obras-primas: os contos O Nariz (1836) e O Capote (1842) estão aí para comprovar isso.
Almas Mortas se destaca, então, por outros aspectos e o cerne deles é o narrador onisciente, que brinca constantemente com o leitor com incontáveis divagações compostas por comentários e análises sarcásticas do desenrolar dos fatos narrados. Tal técnica, o uso de divagações, não é nada incomum na literatura universal do século XIX, mas diferentemente desses outros usos (que possuíam entre si normalmente um viés filosófico), aqui Gógol emprega essas fugas da linha narrativa para pintar linhas predominantemente cômicas por toda a jornada do protagonista. E essas divagações acabam criando as condições narrativas para que os vários coadjuvantes surjam, tais como Petruchka e Selifan¸ empregados do protagonista Tchítchikov, Pliúchkin, que personifica o significado da avareza e o inesquecível Nozdriov, um simplório e hilário fanfarrão, a qual protagoniza pelo menos duas passagens engraçadíssimas. Entretanto, as divagações de caráter mais "convencional" também estão lá, especialmente quando Gógol fala sobre as dificuldades em fazer literatura ou nas pontuais descrições da vasta Rússia.
Mesmo que sem querer, ao narrar as hilárias tentativas de Tchítchikov de adquirir títulos de propriedade de servos já falecidos (as quais, pela explicação mais plausível, lhe dariam um status social superior na capital São Petersburgo, mas a obra deixa uma justificativa mais substancial), o autor é bem feliz ao descrever uma Rússia interiorana até de certo modo desconhecida dos grandes centros. Nas várias visitas a senhores (as) de terras que Tchítchikov fazia, percebe-se certa semelhança com o maravilhoso Memórias de um Caçador (1852), livro de contos de Ivan Turguêniev (1818-1883). Mas enquanto os contos de Turguêniev são poeticamente perfeitos em descrever os servos (mujiques) e as paisagens narradas (este último o mais característico traço da literatura de Turguêniev), Almas Mortas é mais cirúrgico nesse aspecto de descrição do interior russo, já que Gógol foca sua escrita para as pessoas em si, sem que haja um caráter nacionalista por trás disso. Desse modo, os personagens que vão surgindo são mesquinhos, por vezes cruéis, desconfiados e assim por diante, tudo permeado com o já recorrente pano de fundo satírico e caricatural.
Apesar dessa aparente simplicidade, Almas Mortas é também incompleto. Isso porque a obra se divide em duas partes: a primeira, com seus onze capítulos, foi lançada em 1842 e é considerada o "cânone oficial"; a segunda parte seria lançada em 1846, mas Gógol, numa crise mística e nervosa, queimou os manuscritos dessa parte e retomou o trabalho. Mas poucos dias antes de falecer, Gógol incendiou novamente o que havia feito... Os cinco capítulos que hoje podem ser considerados a segunda parte da obra não chegaram a ser queimados e são reproduzidos na sempre excelente edição da Editora 34. Sumamente e como pode se imaginar, Almas Mortas não é um livro "redondo" no sentido narrativo, oferecendo, ao fim do que há de texto conhecido, várias perspectivas imagináveis. Essa segunda parte, na verdade, precisa ser lida apenas como um complemento histórico da construção literária de Nikolai Gógol, já que se percebe uma mudança significativa de estilo perante à primeira parte (é nítida que a história de Tchítchikov nessa parte final que resistiu carecia ainda de muitos ajustes). Ela traz, todavia, excelentes reflexões sobre materialismo e disposição ao trabalho (através do personagem Kostanjoglo) e uma experiência do protagonista com um senhor de terras extremamente burocrático (Gógol parecia ali estar prevendo o funcionamento do Estado Soviético que surgiria dali a 70 anos, numa passagem cômica), apesar dos vários "buracos" narrativos, as quais a edição da Editora 34 faz questão de explicar em notas de rodapé (através da atenta tradução de Rubens Figueiredo).
Este aspecto incompleto do livro é a grande razão da enormidade de estudos literários que dissecam a obra sobre vários ângulos, simbolizados pelo ensaio do professor norte-americano Donald Fanger (1929-), trazido na edição da Editora 34. Além deste, Vladimir Nabokov (1899-1977) faz um longo texto sobre a obra, disposto em Lições de Literatura Russa (Ed. Três Estrelas, 2014). Recomenda-se mais fortemente esta última referência complementar: Nabokov, com a sua recorrente acidez, critica e disseca Almas Mortas e seu autor (especialmente nos seus turbulentos últimos anos de vida), maximizando ainda mais a experiência de leitura.
Almas Mortas é algo inconclusivo, mas de uma construção inigualável dentro da literatura russa: nele, a narrativa adquire ares de um brilhantismo próprio, a qual sobrepõe aquilo que ela conta. No último parágrafo da primeira parte, Nikolai Gógol, numa reflexão lendária, compara a Rússia a uma troica desgovernada: enérgica, chamativa, indomável e dramática. Sem se ater a avaliações da Rússia como país, já que no contexto atual isso pode levar a conclusões mais emocionais, talvez a história de Tchítchikov tenha um pouco disso também: a obra-prima de Gógol é frenética, por vezes deveras estranha e cinematográfica, mas que encanta em seu contar e em suas historietas não resolvidas.