Luíza | ig: @odisseiadelivros 10/04/2020Leitura de quarentena #2Quando estabeleci a meta de ler livros da literatura russa em 2020, não sabia onde estava amarrando meu jegue. É um desafio prazeroso, um doce amargo. Comecei pelo conto de Nikolai Gógol, "O capote", e percorri um pequeno caminho até chegar ao meu primeiro romance russo: Almas mortas, novamente de Gógol. E estou grata por voltar a ele.
Almas Mortas não é nada mais do que uma representação da sociedade russa por meio da jornada de um homem russo. Cômica e perversa, em linhas gerais, mas possuidora de belezas que não se limitam às descrições de paisagens naturais.
O herói dessa jornada é Tchítchikov, um estranho homem do qual sabemos pouco e conhecemos no exato momento em que ele desembarca em uma capital de província e passa a conhecer e a reverenciar as principais figuras públicas do local. Logo suas intenções se tornam claras para os leitores: ele vai atrás de donos de terra para comprar almas (servos), desde que essas almas estejam... mortas. Durante toda a jornada, o narrador não revela muitas informações a respeito de Tchítchikov. Conhecemos suas motivações somente ao final do livro. No entanto, no caminho conhecemos personagens um tanto quanto singulares, genuínas caricaturas que, com certeza, não são encontradas apenas na Rússia.
O livro foi escrito com a intenção política de retratar uma Rússia tradicional, fugindo das demais estéticas europeias. Somos apresentados a um país em que as tradições são muito valorizadas no interior, ao mesmo tempo em que nas grandes cidades há uma grande influência das modas do restante da Europa.
Algo a se destacar, também, é o estilo de Gógol, muito cômico (é possível dar MUITAS risadas com esse livro), com divagações do narrador, que se confunde com o autor, deixando com que aqui e ali ele dê suas opiniões acerca de diversos assuntos que dizem respeito ao país; a linguagem, os costumes importados, a índole da sociedade russa. Além disso, Gógol tem um estilo refinado, em que retrata paisagens que o leitor quase pode enxergar, ouvir e até mesmo pegar. É uma sinestesia bonita pela qual vamos nos enveredando ao passar as páginas desse poema. Poema, título dado a esse livro por Gógol, é o termo russo para obras longas e narrativas. E, sendo assim, foi mantido pela tradução. Tradução sempre primorosa da Editora 34, essa em específico feita por Rubens Figueiredo.
O narrador/autor interage e brinca com o leitor, iniciando uma série de devaneios para em seguida dizer: “Opa! Agora vamos ver o que Tchítchikov está aprontando!”. No entanto, não se engane pela gentileza e comicidade do escritor, há pontos sérios nesse livro. Há a apresentação de uma realidade sórdida, que poucos têm a coragem de revelar. As personagens são extremamente reais, revelando os piores defeitos do ser humano, entre eles, a hipocrisia. E, consequentemente, as caricaturas acabam sendo universais, e não apenas exclusivas da Rússia. Logo, todas as críticas à Rússia se tornam universais.
Porém, é importante que não haja engano. Gógol não se isenta das críticas à sociedade. Em algumas cartas presentes na edição da 34, coloca-se alvo dessas críticas também. Ele exalta e critica a Rússia ao mesmo tempo, e, quando está criticando, critica a si mesmo.
Não obstante termos acesso às cartas e a uma tradução de um ensaio de Donald Fanger, a edição da 34 disponibiliza capítulos do 2° livro, que foram preservados da tentativa de Gógol de queimar os manuscritos do 2º e do 3º livro. A intenção era fazer uma espécie de Divina Comédia russa; infelizmente, sem sucesso, já que ele faleceu antes de cumprir esse objetivo. Podemos ver os traços de um Purgatório no que nos é oferecido na 2ª parte, enquanto a 1ª parte é claramente o Inferno. É uma pena que não tenhamos acesso. É possível ver que Gógol lapidou o segundo em relação ao primeiro livro. Há poucos devaneios, mais explicações da índole das personagens, um autor pouco interativo, um caráter mais moralista. Imagino a incrível continuação que não pudemos ter.
A jornada de Tchítchikov é, afinal, uma jornada pela alma humana. As almas mortas são apenas representadas pelos servos? Não poderíamos pensar em uma sociedade russa tão decadente e caquética que estaria se matando? Morrendo aos poucos graças à hipocrisia e à burocracia e, principalmente, por conta do caráter das pessoas. Mas algum lado positivo as pessoas devem ter, já que era a intenção de Gógol chegar ao Paraíso.
Não tivemos a chance de chegar ao Paraíso, mas, felizmente, tivemos um gostinho do Inferno.