Victoria.Olzany 23/07/2023
Um pouco difícil falar desse livro, porque é um livro de muitas narrativas. Essa é uma característica importante da obra, pois reflete bem o próposito da autora de "escrever sobre mulheres e sobre o feminino" (como explicitamente declarado por ela nas entrevistas que vi sobre esse livro). De fato, abordam-se diversos temas, como maternidade, as figuras de mãe, filha, e avó e essas relações, corpo, ambição, culpa, abandono, identidade, relacionamento com o masculino, ancestralidade feminina, etc., todos esses temas intimamente relacionados ao público feminino, acredito que todas as mulheres se identifiquem com ao menos um desses.
Também nota-se um outro aspecto marcante do trabalho de Saavedra: a estrutura narrativa. A trama central gira em torno de Anna, Maike, e avó (sem nome, justamente, por representar tantas outras); e o livro se divide em duas partes ("O lado de dentro" e "O lado de fora"), cada uma delas contendo três capítulos, um para cada personagem central (e apresentam o ponto de vista diferente de cada uma das três personagens centrais sobre uma mesma história). Essa estrutura conduz o leitor a deduções sobre o desenrolar da história de uma específica linhagem de mulheres no passar das gerações. Sendo assim, a estrutura em si é integrante da trama.
A linguagem eu diria que é simples, com muitos parágrafos longos, e com momentos de muito impacto emocional, revelando sua profundidade. Mas não é um ponto tão marcante se olhado isoladamente. O que faz muito sentido nessa obra.
Anna é atriz, bonita, trabalhando pelo sucesso de sua carreira, quando conhece um diretor de cinema estrangeiro com quem se casa e se muda para Alemanha. Com Anna refletimos sobre a questão da ambição profissional (e, nesse caso, também artística); a dualide desejo/culpa em relação a gravidez (não deseja o papel de mãe, e entra em conflito ao se descobrir gestando); abandono, relações desiguais com o masculino, trauma geracional; se perder e se reencontrar. Com Maike, sobre identidade, auto-conhecimento, a busca por si mesma e por suas origens, instinto, coragem, pertencimento. E, finalmente, com a avó (que varia de acordo com a geração a que se refere): cuidado, proteção, seu papel de guia, seus sacrifícios.
Algo sobre a narrativa de Anna me tocou especialmente (talvez pelo meu próprio momento de vida atual): Anna gestou uma criança, e pariu uma peça de teatro (o capítulo de Anna no "O lado de dentro" é somente a transcrição dessa peça). Me refiro ao contraste entre as gestações (de bebê e peça), a riqueza do material da própria peça escrita e encenada por ela, de cunho autobiográfico, e o caráter central que essa peça desempenha no desfecho do romance. Foi muito emocionante acompanhar a trajetória e o desabrochar de Anna, a mulher que cria para curar.
Há um toque de fantástico na figura de uma Capivara falante que aparece algumas vezes e interage com as personagens. E também de "mistério metalinguístico" na cena do reencontro entre Maike e Max (ou Fênix, rs): Max está "escrevendo" (ou copiando, rs) um livro baseado em um manuscrito que encontrou quando chegou no quarto que passou a habitar em uma clínica psiquiátrica, e esse livro, parece ao leitor, a história oculta de Maike por conta de algumas referências às demais narrativas, como num encaixe, mas que permanece oculta para as personagens. Além disso, Max cogita adotar um pseudônimo feminino em homenagem a Miguel de Cervantes Saavedra (como a própria autora). É um diálogo bem maluco e que mexe muito com Maike, e esses recursos colocados pela autora envolvem também o leitor nessa maluquice (o que foi muito interessante).
Trecho marcante:
"(...) gritou durante horas, pensou que ia morrer, teve alucinações, a criança dentro dela abria sua barriga por dentro com uma faca e saía sozinha para o mundo lá fora, a criança dentro dela era escura e seca, feito um macaco, a criança dentro dela nascia com todos os dentes, dentes enormes que apontavam para fora e deformavam sua boca, a criança dentro dela comia a própria placenta. E quando se deu conta, horas depois, a criança dentro dela era um bebê embrulhado em seus braços. Uma menina"