Pandora 09/07/2019Primeira a coisa a se dizer: este não é um livro fácil. Apesar do elo da narrativa ser a maternidade, várias questões femininas e mesmo existenciais são abordadas por Carola. Com muita propriedade a autora fala sobre pertencimento, identidade, desamparo, abandono e exílio. Ela que, nascida no Chile em 1973, veio para o Brasil com os pais, que fugiam da ditadura de Pinochet, aos três anos. Morou na Alemanha, França e Espanha e hoje vive no Rio de Janeiro.
Gostaria de ter lido os livros da autora em ordem cronológica, uma vez que li numa entrevista que este “Com armas sonolentas” é, na sua opinião, uma ruptura com as obras anteriores. Aqui ela não só faz uso de diversos recursos narrativos e técnicas literárias, mas introduz elementos místicos e fantásticos. Sim, aqui se fala com os mortos, com os bichos, se sonha acordado, realidade e ficção se misturam. E há muita reflexão (adoro pôr a caixola pra funcionar!).
Para um pós doutorado, Carola iniciou uma pesquisa por romances brasileiros que retratassem relações entre mães e filhas. Segundo ela, havia muito pouco. Daí surgiu a ideia do livro. Ele é dividido em duas partes: O lado de fora e O lado de dentro; em cada um deles temos as histórias de Anna, Maike e a avó (cujo nome não sabemos). Na primeira parte conhecemos as personagens; na segunda elas conhecem a si próprias. É, porque as três estão perdidas no mundo, indefinidas. Quem eu sou? O que eu quero? De onde eu venho? Pra onde eu vou? Para Carola, o lado de dentro e o lado de fora não são duas faces de um bordado, mas sim uma Fita de Möbius.
Anna é uma aspirante a atriz que se casa por impulso com um diretor alemão, na esperança de ver sua carreira deslanchar e se muda com ele para a Alemanha. Maike é uma jovem alemã que se sente deslocada em sua própria família, em seu próprio país. A avó é uma menina de 14 anos que é mandada pela mãe de Minas Gerais pro Rio de Janeiro para ser doméstica em Copacabana. Histórias diversas? Nem tanto.
O que me faz amar livros como este é exatamente o que disse Carola Saavedra numa entrevista a Raimundo Neto (escritor e crítico literário): “Acho que o bom romance é uma experiência, um acontecimento. Algo que deixa marcas, mesmo que a gente não saiba quais são, mesmo que a gente não entenda tudo. Aliás, os livros que mais me interessam são aqueles que não se deixam destrinchar totalmente, que têm algo de enigmático, de inacessível.”
Bem este livro aqui.
Notas: “Com armas sonolentas” vem de um verso de Sóror Juana Inês de la Cruz, religiosa e poeta mexicana, considerada uma das primeiras feministas da História.
Os textos em espanhol e língua geral amazônica estão traduzidos em Notas ao fim do livro.
A Fita de Möbius ou Moebius foi criada pelo matemático e astrônomo alemão August Ferdinand Möbius, em 1858.
Sua representação mais comum e conhecida é como um símbolo do infinito.