spoiler visualizarlou 10/01/2024
Uma obra especial
Cara, que livro absurdo. A autora foi magnífica aqui. Foi gigante. Ele tem um linguajar fácil de entender, popular. A tradutora também conseguiu nos passar uma impressão aparentemente bem realista do vocabulário dos personagens, pelo que se parece com o nosso dependendo da classe social, que, aliás, foi outra demonstração de talento puro pela habilidade em nos fazer pertencer ao livro.
Não importa a classe social do leitor, ele VAI ser inserido na realidade em que a história se passa, uma hora ou outra, e comigo não demorou nada.
Ele tem um quê de cinema ou novela, como se suas cenas fossem realmente divididas por cortes, deixando ele ainda mais instigante. Acho que a forma como a leitura flui contribui bastante pros nossos sentimentos em cada passagem, a forma como o texto é pausado nas partes mais tensas, a forma como o personagem de repente começa a falar do ambiente pro leitor dissociar como ele, a forma como os sentimentos dos personagens não são descritos, porque não importam em certos momentos. Me fascinou.
A respeito da intensidade que ele tem, logo no primeiro capítulo eu já tive um gostinho do que viria, mas a cada capítulo eu era surpreendida, mais e mais uma vez.
Sim, ele tem muitos gatilhos. Pedofilia, racismo, assédio e lesbofobia são exemplos. Na verdade, é a forma como eles são abordados que o torna tão inteligente. Com maestria, a autora ensina ao leitor, em misto com esses assuntos, que a realidade pode misturar amor e ódio de forma intrínseca numa conexão sem igual e essencial pro entendimento da população da época, da realidade naquele momento.
Esse livro trata de uma mãe que acha certo vender a inocência da filha em troca de comida pra por na mesa, trata dos efeitos mais brutos possíveis do capitalismo na prática expulsando famílias inteiras de suas casas pobres na busca de um espaço suficientemente abrangente em que caiba toda a riqueza dos turistas e ganância de quem é capaz de fazer o que for preciso ou pra ter mais dinheiro do que já tem ou pra pagar aluguéis atrasados.
Ele aborda meninas muito novas arriscando a saúde de diversas formas na busca pelo clareamento da pele e, com isso, a possível aprovação de homens brancos, a oportunidade de estudos numa universidade ou até mesmo um lugar no céu.
Ele fala sobre amores incompreendidos que fazem a importância ultrapassar o racismo, a desaprovação familiar e a fuga da pequena moradia em que podem arriscar na busca de paz. Fala sobre a culpa que as mulheres negras precisam aprender a ter desde o início da vida, se martirizando por existirem, culpando a si mesmas por qualquer erro que acontece na vida delas.
Fala sobre o julgamento quase insuportável em ser uma mulher e gostar de mulheres, crucificada por religiosos e vizinhos que nem a conhecem nem frequentam igrejas, mas "ouvem rumores". Fala sobre a relação entre mãe, filhas e irmãs, a expectativa que se tem sobre a irmã que salva a família e a responsabilidade de nunca fazer qualquer coisa que não seja estudar ou seguir a opinião alheia, sem ter a sua própria sobre a escola, os concursos, a profissão, com quem namora e o que come.
Ele tem uma maneira bem discreta e rápida sobre como sobreviver e se adaptar numa realidade tão covarde e impessoal, parece que todos os personagens já sabem como agir em todas as piores situações que lhes pode acontecer, já sabem não se importar com a pior humilhação a que passarem, sabem o que falar de forma incessantemente e incansavelmente cruel as verdades brutais pras pessoas que mais importam pra elas... Como se todos soubessem que assim a vida é.
A forma como os personagens agiam, a maneira direta de falar, de xingar, de jogar a realidade na cara, de acusar, de MATAR... É surreal de ver.
Me chocou a forma indelicada com que tantos assuntos assustadores foram abordados pelos personagens de forma tão natural e insignificante, diferente de tudo o que já vi.
Confesso que queria ter dito mais sobre ele, queria ter feito algo melhor, mas me fogem palavras agora. Ainda to sem reação com o fim e a grandiosidade dele.