Camila Roque 29/07/2020
Um livro que nos acalenta e dá a certeza de que um dia melhor vai nascer para o Brasil
Hoje amanheci com o som dos tiros no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro. O helicóptero que sobrevoa toda a área, baixo, não me deixa dormir. Não que minha consciência fosse me deixar voltar tranquilamente para o meu sono: eu estou perfeitamente segura em um prédio de classe média, tenho privilégios estando na família que me abriga durante a quarentena. Porém, talvez algum jovem (que provavelmente é negro) tenha perdido a vida durante esse tiroteio. Algum jovem invisível, que talvez se torne manchete de jornal, ou que talvez se torne somente mais um número. Talvez ele não seja jovem: talvez seja mais um ajudante de pedreiro de 40-50 tantos anos, como era o Amarildo. Ou talvez seja criança, como a menina Ágatha. Em comum: todos perderam a vida e tiveram seus sonhos interrompidos, todos das classes menos favorecidas, todos vulneráveis e, repito, invisíveis.
Longe daqui, na minha amada Minas Gerais, os casos e mortes por coronavírus continuam a crescer. No Brasil, ao todo, já são quase 90 mil mortos. E eu sinto medo pela minha família, formada por empregada doméstica, porteiro, faxineira, funcionária de supermercado. Em comum: nenhum deles foi atingido pelo “novo normal”, a “nova realidade de home office”. Em verdade, quem é pobre provavelmente vê matérias sobre isso e se pergunta por que somos nós os mandados a morrer, os que devem se sacrificar e correr riscos todos os dias somente para garantir o conforto mesquinho de poucos, enquanto alguns dos nossos trabalhos poderiam ser muito bem dispensados em meio a uma pandemia. Para quê ter uma faxineira todos os dias em um prédio sem ninguém dentro? Para quê exigir que a emprega vá trabalhar, quando os patrões estão em casa e poderiam muito bem limpar e cuidar da criança? Preferem arriscar a vida da empregada e da família dela. E ela não tem escolha: precisa daquele dinheiro, precisa sobreviver de alguma forma, precisa sair de casa. Ela também é invisível.
Enquanto isso, o governo federal deveria garantir alguma união e estabilidade nesse momento de crise. Deveria liderar todos os estados do país, ser exemplo de retidão e comprometimento com as diversas causas que nos afligem. Não é isso o que vemos: temos um presidente infantil, que se deixa levar por mil e uma rixas. Uma bloguerinha, alguém que quer atenção a todo custo, que tem uma incrível capacidade de se fazer de vítima e esquecer que, enquanto isso, brasileiros invisíveis sofrem e morrem vítimas de violência, de ódio, de descaso, de machismo e de racismo.
Isso é uma resenha de livro. Por que falar tudo isso? Porque é impossível não pensar em política e no nosso momento atual quando lemos a história de Michelle Obama.
Ela era uma invisível: negra, pobre, moradora de uma região vulnerável de Chicago. No entanto, estudou e se tornou uma das melhores em sua escola e, por fim, se formou em Princeton e Harvard, lugares que disseram não ser para ela. Tinha uma promissora carreira de advogada. Se casou com um homem incrível, inteligente e sensível. Se tornou primeira-dama americana e, mais do que isso, primeira mulher negra a residir na Casa Branca. Ela é uma exceção que confirma a regra e reconhece isso.
Reconhece que teve o privilégio de ter uma família que a apoiava e amava. Reconhece que muitos jovens negros não alcançam o mesmo status dela porque são levados durante toda a vida a desacreditar em si mesmos. Reconhece que pouco tem de mérito no fracasso desses jovens negros: para chegarmos a qualquer lugar, precisamos ser o dobro de duas vezes melhores que outros mais favorecidos.
No entanto, ela venceu e procurou ajudar outros a vencerem também. Lutou pelas causas em que acreditava ao tentar criar um sistema de seleção de estagiários na prestigiada instituição onde trabalhava, que fosse mais inclusivo. Lutou ao abandonar a carreira de advogada por outra no terceiro setor e, depois, na prefeitura. Lutou ao se tornar primeira-dama e defender o combate ao racismo, o acesso a bolsas e financiamentos em grandes universidades americanas e o direito à saúde e ao atendimento dos desfavorecidos. Lutou pelo direito de mulheres ao estudo. Lutou por muitas outras causas que só me fazem admirá-la.
“Minha História” é, por tanto, um livro que nos dá esperança. Que nos acalenta ao nos fazer acreditar que estamos certos em defender ideais e valores como a igualdade racial e de gênero, equidade, fraternidade.
Por fim, termino com as palavras de Michelle. Espero que encontrem esperanças também ao transpor o que ela escreve sobre o atual momento dos EUA para a nossa realidade aqui no Brasil, quando ambos temos líderes que retrocedem e dão mostras de sua incapacidade para diálogo em discursos carregados de ódio:
“(...) Tornar-se exige paciência e rigor em igual medida. Tornar-se é nunca desistir da ideia de que é necessário avançar.
“(...) tenho lido notícias que reviram meu estômago. À noite, fico acordada na cama, furiosa com o que anda acontecendo. É angustiante ver como o comportamento e a agenda política do atual presidente têm levado muitos americanos a duvidarem de si mesmos e a duvidarem e temerem uns aos outros. É penoso ver programas compassivos, montados com tanto cuidado, sofrerem retrocessos, enquanto se perdem alguns dos nossos aliados mais próximos e os setores vulneráveis da sociedade ficam expostos e são desumanizados. Às vezes me pergunto a que ponto vamos chegar.
“No entanto, não permito a desesperança. Nos momentos de maior aflição, respiro fundo e relembro a dignidade e a decência de tantas pessoas que encontrei ao longo da vida, os inúmeros obstáculos que já foram vencidos. Espero que outros façam o mesmo. Todos nós temos um papel na democracia. Precisamos nos lembrar do poder de cada voto. Continuo conectada a uma força que é maior e mais poderosa do que qualquer eleição, qualquer dirigente ou qualquer noticiário: o otimismo” (OBAMA, 2018, p.431).