A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso W. J. Solha




Resenhas - Dulcineia e Trancoso


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Krishnamurti 18/07/2018

A engenhosidade a serviço da arte da palavra
Raras são as obras ficcionais, (e já escrevi isto em alguma crítica), em que seus autores tentam estabelecer diálogo com textos de outros escritores. Mais raro ainda quando nesse diálogo se inclui também uma referencialidade expressa à obra de autores distanciados no tempo por séculos. E raríssimo quando de um tal projeto, resulta obra de alta qualidade como é o Rimance do senhor Waldemar José Solha, “A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso”. Alguns pensarão que a grafia da palavra “Rimance” foi digitada equivocadamente e que o certo seria “Romance”. Não foi. Tal gênero é o Romance popular em verso, que se cantava ao som da viola em séculos passados, mas ainda freqüente no Brasil, em verdade um pequeno canto épico.
Voltando à questão do inusual, ou insólito, como queiram, acrescentamos que tal atitude quando realizada sob a égide de artistas que apuseram ao real uma reinterpretação subversiva pela própria natureza, derivando para a suprarrealidade que atiça a compreensão e alarga-a para ampliar a perplexidade a cada aproximação, propicia deleite ainda maior ao leitor, dependendo claro, de como este se posiciona ante ao inusitado do texto. É de se ter em mente que ao lermos obra de ficção, estamos aptos, como escreve Tânia Du Bois na contra-capa da obra, ao despertar “na palavra ações e contrastes, fazendo a diferença, por ser algo que revigora por dentro, desencaixa e flui se conectando com a força geradora e dando liberdade para o leitor interpretar, de muitas maneiras, suas construções poéticas, descobrindo novos sentidos”. Eis aí senhores um dos sentidos fenomenais que a literatura propicia.
Portanto, é interessante tecermos algumas considerações, ainda que brevíssimas (como impõem as limitações de uma resenha), sobre os novos e atualizados significados que Solha encontra nas obras de Trancoso, Miguel de Cervantes e Ariano Suassuna, e ajusta-as e dá novo significado aqui e agora, nesse mundo safado no qual vamos tecendo o futuro. Comecemos pelo autor mais recuado no tempo (há vários outros autores citados no texto de Solha, entretanto os mais significativos, aqueles que compõem a espinha dorsal da obra num sentido de intertextualidade), parecem mesmo referenciar as Histórias de Gonçalo Fernandes Trancoso, considerado um dos primeiros contistas da língua portuguesa que escreveu os Contos & Histórias de Proveito & Exemplo (1575). As histórias de Trancoso são tradição popular que permanece viva até os dias de hoje no Nordeste.
Temos em seguida Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) notável romancista, castelhano. A sua obra-prima, Dom Quixote, muitas vezes considerada o primeiro romance moderno e um clássico da literatura ocidental, é considerada um dos melhores romances já escritos. Dá-nos conta esta obra monumental, que de tanto ler historias de cavalaria, Dom Quixote ingênuo fidalgo espanhol, passa a acreditar piamente nos efeitos heróicos dos cavaleiros medievais e decide se tornar, ele também, um cavaleiro andante. Para tanto, recorre a uma armadura enferrujada que fora de seu bisavô, e se auto-intitula Dom Quixote de La Mancha. Como todo cavaleiro, ele precisa de uma dama a quem honrar. Elege então uma lavradora que só conhece de vista e a chama de Dulcinéia. Depois de tomar essas providências, monta em seu decrépito cavalo Rocinante e foge de casa em busca de aventuras acompanhado do fiel escudeiro Sancho Pança: um ingênuo e materialista lavrador, que aceita seguir o fidalgo pela promessa de uma ilha para governar. Obra fantástica do embate entre razão, sonho, ilusão, e materialidade.
E finalmente, o nosso contemporâneo brasileiro Ariano Vilar Suassuna (1927-2014), dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta e professor. Autor de “A Pedra do Reino” (publicado em 1970) livro de decifrar, de palmilhar página a página, em compasso de quem anda pelos descaminhos do sertão sob um sol escaldante. Dom Pedro Dinis Quaderna, o protagonista, nos diz: é um castelo de sonho, “obra máxima da raça brasileira”. Como escreveu Raquel de Queiroz no prefácio pois, argumenta ela, ler livro escrito por um erudito é o diabo. Ou você eleva o pensamento ao nível do visionário e delirante Quaderna ou deixará a leitura inacabada. É de delírios, miragens de deserto, de legenda e sonho que trata essa obra. Da grandeza do homem mesmo diante da mesquinharia da vida. Quadro vívido da mistura dos povos que formaram o Brasil no seu âmago. E é assim que vamos à “Engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso.
“Alta / e ancestral no meio do plaino, / a Pedra do Reino, / rocha dupla na vertical, no sertão pernambucano, / insufla no povo (mesmo quando se camufla em profano) / a estupenda lenda de que tem, / dentro, no centro, a catedral / na qual, / el-rey D. Sebastião, de Portugal, o afoito, / sumido (ou abduzido) na batalha de Alcácer Quibir, / de 1578, / está por vir, / messiânico, / pra levar a fundo a retirada dos males do mundo, / cada vez mais / satânico”.
Este o mote da obra, em que entram como personagens, o próprio Ariano Suassuna e o Dom Quixote de Cervantes que termina virando o Bom Pixote, Dulcineia [aquela musa inspiradora de Quixote] o valeroso Trancoso, sô Leo (que é o dono do circo que ali se instala. Sim circo, porque tudo termina virando um tremendo circo, metáfora perfeita não só do Nordeste brasileiro, mas do mundo!) e o palhaço carioca Bozo todos a interagir com a multidão que ali se reunirá e que em suma, representa o povo pobre e sofrido do Nordeste. Todos diante desta Pedra do Reino, onde se forma o cenário que desenvolverá a trama da obra.
“Todo mundo – deste horizonte - / verá Dulcineia & Trancoso, / o espetáculo – estrondoso! – de São José do Belmonte!”
George Orwell (1903-1950) escreveu algo que contém a alma de nossos tempos: “A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa”. E entre os acontecimentos que se vão sucedendo, e cobertos rigorosamente pela mídia mundial que tudo cobre, tudo vê, e tudo explica conforme suas conveniências (estão citados literalmente os canais mais influentes do mundo), que fazem a cobertura do verdadeiro “samba do crioulo doido” que ali se estabelece, tal e qual o Brasil hoje. “Né não?”
Uma: “pura loucura, / a da multidão que se crê na iminência de ver - / na vigésima primeira centúria – a Pedra / do reino se abrir, / mediante sacrifícios humanos (lendas de lusitanos), / e, / de dentro dela, / o Sumido, / o Desejado, o Encoberto, / o Adormecido / sair, / no sebastianismo que, / aqui, / já deu tanta vida ceifada / por absolutamente nada. / Maior, / ainda, / é a insânia, / extemporânea, / dessa paixão histérica, /...” Que faz o palhaço carioca Bozzo declarar furioso, em letras maiúsculas:
NÃO, A HUMANIDADE É o CÂNCER DO PLANETA TERRA”.
Tudo degringolando cada vez mais: E cito apenas algumas palavras retiradas dos versos de Solha que todos vão saber bem direitinho do tempo e do lugar de que se fala: crimes / punhaladas/ pancadarias / execuções / pus / lutas / cortes sangrentos / eletrocussões / torturas / tiros / fraturas / dores / explosões. É da “Pedra do Reino” isto? Onde a ficção? Onde a cruel realidade que vivemos?
A baderna torna-se tão incontrolável que nem Generais controlam a situação. Um “vale-tudo: de caças a jato” a “flechas de botocudo”. Pensa-se em alguém como um Hitler, Nero ou Macbeth. Não; nem esses resolveriam os impasses que ali vão se engendrando, é preciso pensar “num grande inimigo”. É preciso instalar algo mais. É preciso o horror! O apocalypse now onde, “nós todos cada dia mais próximos / de um juízo / Final. / Rangem-se dentes por toda parte, / gemidos, / gritos no mundo em chamas, / o enfarte”..,
E é então que:
...“há um som – contínuo de rodas, e / outro, igual – picotado por podas, / de patas, / no que um coche (agoureiro, sem o cocheiro) chega, / dele apeiam... baratas... e a Morte, / horrível / terrível / tão seca / que, / quando se encurva e agoura, / a pele – nas omoplatas (como que de sucatas) / - estoura, e as vértebras, ouriçadas, / saltam – numa fila de lâminas - / afiadas.
- Morte – diz Ariano – é o nosso Norte. / Qualquer que seja a direção / e sorte”.
Incontrolável é a situação. Não há controle possível, a sensação é de danação eminente. “Como – “liderar o povo”?, - “Como”?, pergunto de novo, / se fora do picadeiro é como se eu, / por derradeiro, / falasse sem microfone, pra um povo com headphone?”
Veja-se até aqui a engenhosidade da palavra a serviço da arte como o próprio titulo da obra já nos diz, a engenhosidade de um autor de notável lucidez lírica que conta com duas dezenas de obras publicadas.
Mas afinal como definir um tal texto, se é que até aqui ainda há necessidade de definições inúteis? Seria como escreve o jornalista e escritor Daniel Zanella na orelha da obra, “uma novela de cavalaria para tempos pós-modernos, dentro da lógica nordestina”? Um grande circo místico, uma companhia de teatro itinerante? Ainda na caracterização de Zanella. Ou como observa Éverton Santos na contra-capa. Um cantar “inventivo, crítico, simbólico, perspicaz e sobretudo, irônico”? Decida você leitor. O que me cabe afirmar, e faço-o com prazer, é que vale a pena conferir como se resolve a incrível trama em versos que o senhor W.J. Solha engendra. Deixamos como provocação à curiosidade, apenas uma fala interessantíssima do tal El-rey que afinal aparece:
“El sueño de La razón produce monstruos . / horribiles. A fé, com superstição, é mestra de / tristes dribles! Critério, imaginación, / tienem de entrar em acción, / o no serán mas / possibiles!”
Confiram como termina essa saga, leitura que recomendo muito. Muito mesmo.

Livro: “A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso” – Narrativa em versos, de Waldemar José Solha. Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2018, 98p.
ISBN 978-85-5833-369-6

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