Suss 05/07/2022Amargo é o sabor da glóriaVamos lá, pois tenho muitos pensamentos acerca do livro. Primeiro, o final surpreende, trazendo de volta o título do livro: Gogo no Eiko, que significa 'o rebocador da tarde'. Os meninos que o rebocam para terra firme, o marinheiro que perdeu as graças do mar, sendo puxado de volta para terra.
O livro trabalha com vários contrastes, o grotesco e o delicado, a glória e desilusão, os valores antigos e os novos e assim por diante, o tempo todo, o que também é algo interessante de observar e que comentaremos em mais detalhes adiante. No começo, até achamos estar lendo um livro de romance, ilusão que nos é duramente tirada ao nos depararmos com a cena da morte do gatinho.
Aqui vale comentar como também, em diversos momentos o livro nos entrega o que vai acontecer no fim:
pág 53: "É provável que me evapore mais rápido do que as lembranças, graças a essas duas noites inimagináveis."
Ao ser perguntado acerca de porquê o marinheiro era seu herói para Noboru, ele responde:
pág 56: "Não sei bem, mas algum dia fará algo espetacular."
Nesta última sentença, também podemos ver como o menino, Noboru, deposita as expectativas de glória no marinheiro, que representa esse desconhecido, essa realização, esse além mar, preenchimento do vazio que sente. E aqui entramos em, não só a imagem que se tem da glória na história, como também em uma das muitas possibilidades de interpretação das três figuras do romance.
Em primeiro lugar temos Fusako, a figura menos aprofundada do romance, talvez até pela misoginia autodeclarada do autor. Fusako é uma mulher moderna, representando a modernização em si, assumindo o negócio do marido depois da sua morte, usando roupas ocidentais, adotando um estilo de vida ocidental. Em um único momento ela usa roupas em estilo japonês, para se despedir do marinheiro. Há certa crítica em relação a essa "americanização de costumes", havendo a contínua busca pela glória japonesa, fato esse a que também retomaremos mais a frente, quando falarmos em maiores detalhes sobre os valores e Japão Pós-Guerra. Inclusive, a atriz Yuriko, que chega a aparecer para comprar na loja de artigos ocidentais de Fusako, é malvista pela mesma, embora em nenhum momento possamos realmente entender o porquê disto, assumindo apenas uma visão ainda antiquada de Fusako, por mais que na história em si ela assuma esse papel de modernidade. Fusako representa a modernidade, mas também é castigada pelo papel que ocupa, pelas mãos do próprio filho, quando comete a morte do marinheiro.
pág 114: "Fusako morava em uma casa sem cômodos ao estilo japonês. Apesar de viver uma vida à maneira ocidental, apenas no Ano-Novo, observando a tradição, celebrava bebendo saquê toso e degustando comidas próprias para a ocasião, em uma sala de jantar no estilo ocidental."
Em relação a isso, temos a imagem do menino, Noboru, um garoto um tanto cruel, que tenta preencher seu vazio, que menciona diversas vezes, em busca de uma glória. Na página 13 do livro, logo no começo, o menino comenta como estava convencido de ser um gênio, assim como seus amigos.
Em grupo, todos comentam sobre sua desilusão do mundo. Aqui, cabe comentar como é interessante falarmos sobre isso, dentro do contexto que o livro se passa, logo após a recente desocupação americana no Japão. Um Japão que perdera a guerra, fora ocupado por seus inimigos, tivera sua liberdade decepada por eles, perdera toda sua glória e honra. Até seus valores e cotidiano pareciam usurpados.
A geração dos meninos era a geração perdida que vinha de um mundo abalado. A geração da percepção desse mundo, precisando aprender a lidar com ele, com suas consequências. Inclusive, sobre a desilusão, o próprio marinheiro chega a comentar que, embora buscasse a glória no além-mar, tudo que aprendeu foi:
pág 25: "Contudo, a vida no navio apenas lhe ensinava a regularidade das leis naturais e a estabilidade dinâmica de um mundo conturbado."
Dentro de um imaginário imperialista japonês, a glória é associada a morte, a recuperação de honra, aos kamikaze. E podemos ver como isso é verdade aos olhos do menino ao vermos eles pensarem que:
pág 66: "A morte tinha transfigurado o gato em um mundo perfeito."
Para eles, a honra e a morte estavam interligados. Esses meninos buscavam essa glória, essa recuperação de algo perdido, quiçá um Japão que não conheceram, mas que ainda trazia vestígios. Ao crescerem, eles perderiam essa liberdade, se tornariam adultos, fariam o que era esperado pela sociedade, cumpririam papéis sociais, que para eles, parecem prefigurar entre as ideias mais nefastas possíveis, se tornariam pais. É fascinante ver as ideias de violência que esse Pós-guerra traz aos meninos um tanto perdidos de ideias e arrogantes. As ideias que eles trazem inclusive, são ideais americanos? São ideais do Imperialismo japonês?
Ao cometerem a morte do marinheiro, as crianças estão em solo que antes era ocupado pelos americanos, na antiga instalação das forças americanas. Ali comentem a atrocidade, mas ao mesmo tempo, ali que realizam o ato que traria a glória de volta ao marinheiro. Rebocariam de volta a glória roubada pelos americanos com o sangue.
pág 161: "Precisamos de sangue! De sangue humano! Do contrário, este mundo vazio acabará empalidecendo e murchando."
Eles são os punidores, eles que castigam os que são indignos, os que perdem suas glórias. Nesse sentido, o romance parece em algum ponto até apoiá-los e a sua violência, talvez até por conta do fato de o autor ser um extremo nacionalista, temos essa impressão, que o livro apoia essa busca pela glória e essa punição pela aceitação da sociedade como ela é agora.
Sobre isso, inclusive, os meninos chegam a usar o famoso ditado japonês, mostrando que carregam valores considerados "verdadeiramente japoneses", ao dizer:
Pág 157-158: Uma engrenagem que cai rolando precisa ser encaixada de volta à força em seu lugar de origem.
Ou seja, o que não se encaixa na sociedade, fazemos encaixar. O diferente não tem espaço, nesse caso, a ocidentalização? Mais certamente talvez, a aceitação, a normalização de vida, os valores tradicionais, a decepção. Aqui só há espaço para o extraordinário, mais uma vez, para a famosa glória.
E por fim, temos a imagem do marinheiro, Ryuji Tsukazaki. Tsukazaki em muito me lembra a imagem do protagonista do livro "O Deserto dos Tártaros" de Dino Buzzati, em sua espera eterna por uma glória que não chega, que não vem, por sua vida inteira ao esperar algo de especial que há de lhe acontecer.
pág 25:
"-A glória! A glória! A glória! Eu nasci só para ela!
Ignorava por completo o tipo de glória que desejava ou que lhe seria adequado. Sabia apenas haver um ponto luminoso na profunda escuridão do mundo que fora preparado só para ele e que um dia se aproximaria para iluminá-lo e a mais ninguém."
pág 26: "Deve haver um destino especial reservado para mim. Um destino resplandecente, feito sob medida, vedado aos homens comuns."
Durante muito tempo, o próprio marinheiro parece se enxergar tal como um ideal, alguém que vive da espera, a espera pela glória, como no caso do Japão, uma glória que nunca veio. Porém, no decorrer da narrativa, percebemos o amadurecimento desse marinheiro, ao começar a perceber que a busca por essa glória podia ser inútil. Buscara em diversos países e nada achara. E, ao se apaixonar por Fusako, ele acha ter encontrado seu lugar. Passa a viver uma vida normal em terra, onde antes nunca vira graça nas coisas. Assume os negócios da loja da esposa e até seu papel como pai de Noboru, onde então é julgado por esse.
No final, o marinheiro é justamente julgado e castigado por sua glória perdida, que, tal como o Japão aos olhos de Mishima, precisava recuperá-la. Noboru, desiludido e ainda em busca deste algo que ele desconhece, que ainda não chegou, preso na realidade do Pós-Guerra, decide por si mesmo achar a glória perdida, antes que fosse tarde demais, antes que ele mesmo tivesse sua glória roubada de si. Ao ser desiludido por projetar seus ideias no marinheiro, o castiga por não cumprir suas expectativas. Uma crítica de Mishima ao Japão que perdeu a guerra, não alcançou a vitória, perdeu sua glória.
pág 174: "Ainda mergulhado em sonhos, Ryuji tomou um gole do chá morno. Sentiu um amargor na boca. Como todos sabem, amargo é o sabor da glória."