Pereira 12/07/2024
"O pior é o despropósito"
Otto Maria Carpeaux afirma que Machado de Assis é um autor que nasceu duas vezes. "Memórias Póstumas de Brás Cubas" inaugura esse segundo nascimento. Certamente, não lembraríamos de Machado de Assis até os dias de hoje sem a publicação desse livro.
A escrita da obra é simples, com uma linguagem clara, considerando o vocabulário e as expressões comuns do século XIX. Além disso, é importante levar em conta as referências literárias utilizadas, que evidenciam Machado como um leitor ávido. Afinal, ler é uma forma de escrever com os olhos e escrever é colocar no papel a memória das leituras, como disse o professor João Cezar de Castro Rocha. Essa compreensão, atingida na maturidade de Machado, o levou a decidir não mais guiar o leitor com todas as informações, como quem ampara uma criança (o que fazia em seus romances anteriores). “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.”
“A gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos.” A história narrada tem como lei máxima carnavalizar a vida de forma tal que só pode ser alcançada pela pena de um personagem já falecido, descompromissado das vaidades do mundo terreno. Talvez já existam aí os traços da “tinta da galhofa” mencionados nas notas ao leitor.
Os anos 60 do século XIX marcam a chegada ao Brasil dos livros de Allan Kardec e a moda crescente das psicografias, que incluíam livros supostamente escritos por pessoas já falecidas, considerados portadores de algum valor e sabedoria por aqueles que teriam feito a passagem da vida ao post mortem. Assim, a cultura brasileira de não falar mal dos mortos é colocada à prova neste romance.
Brás Cubas tem uma trajetória de vida frívola e egoísta, vendo as pessoas apenas como meios para satisfazer suas próprias vontades. O narrador carrancudo, arrogante e com uma vida aparentemente enfadonha e desinteressante pode (ou não) explicar os atuais 4.587 abandonos de leitura desta obra. E há ciência disso: “o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…”
Mas se a galhofa é o que dá forma ao romance, ela também carrega a “tinta da melancolia”, que atualmente poderia ser associada a um quadro de depressão. Esses sinais se manifestam com a primeira desilusão amorosa, um amor que durou “quinze meses e onze contos de réis”, em que Brás preferiu “dormir, que é o modo interino de morrer”, agravado pela morte da mãe e presente em diversos outros momentos ao longo da obra. Acredito (além de interesses escusos) que esta experiência leva Brás a uma “ideia fixa” que acaba por ser a razão de sua morte. Um dia, estando em casa com uma “ideia no trapézio que tinha no cérebro”, abriu a janela e foi atingido por um vento que levou ao desenvolvimento de uma pneumonia, uma condição praticamente fatal na ausência de antibióticos na época.
A ideia: criação de um medicamento anti-hipocondríaco capaz de curar os males da melancólica humanidade (mesmo sem ser capaz disso), sob o pretexto de alcançar a fama. Contudo, pessoalmente tenho sérias dúvidas se foi apenas o puro egoísmo agindo ou um desejo inconsciente de se livrar da própria condição.
Ao fim, Brás foi medíocre em tudo o que se propôs ou lhe propuseram para sua vida. Morreu amargurado, sem filhos (apesar de os querer) e sem fama (mesmo sendo sua pretensão). Seu consolo em morte: nunca na vida ter precisado trabalhar, sendo herdeiro de um provável traficante de escravizados. Brás mente e trai, inclusive a nós, seus leitores. E, para Machado, resta a lucidez. Nem amor nem ódio, perdoa a todos como na ópera, mas não sem antes rir de tudo e todos.
A primeira vez que li essa obra era apenas um adolescente e fui afortunado por uma excelente professora fazendo a mediação. Hoje, já adulto, parece um outro livro, pois eu também já sou outro. “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva que o editor dá de graça aos vermes.”
Existem muitos elementos a serem apreendidos sobre a vida, o universo e tudo mais neste livro, mas acredito que o imediato pode ser resumido assim:
"(...) Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta (...)
Sem ti correrá tudo sem ti
(...)
Só és lembrado em duas datas...
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada."
(...)
— Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)