caio.lobo. 07/09/2021
Leiam ouvindo a ópera
HQ baseada no grandioso ciclo de 4 óperas "O Anel do Nibelungo", de Richard Wagner. Assistir o ciclo de quase 16 horas já é um ato grandioso em si e Wagner foi além de seu tempo com sua obra, pois a cenografia da ópera exige muito até nos dias de hoje, com cenas de cavalos voadores, gigantes, muito fogo e a dissolução de todo o universo através de fogo e água ao mesmo tempo, além de ótimos cantores líricos que aguentem atuar por até 4 horas seguidas; todos esses requisitos são mais "fáceis" através do cinema moderno, então Wagner criou a cena cinematográfica antes do cinema. Além disso sua poderosa música foi a própria inspiração de temas musicais de cinema, colocando pequenos trechos musicais que anunciam um personagem, como uma marca, ou de uma ação (o Leitmotiv).
Essas cenas incríveis só poderiam também serem feitas, além de no cinema, na hq, e essa magia que esta obra-prima das hq traz aqui. Porém temos o prejuízo da música, que é metade de toda a obra, por isso é interessante ouvir trechos selecionados da tetralogia para compensar essa falta. Entretanto o ilustrador é um mestre e deve entender muito bem de música, pois através de figuras simbólicas, linhasde ação, cores estratégicas e formas consegue "reproduzir" pequenos trechos musicais e os leitmotivs. Além disso o texto obedece o libreto (texto) da ópera.
Mas não se engane, essa obra/ópera não é a mitologia nórdica em si, apesar de grande parte ser baseada em épicos germânicos. Wagner, que além de compositor escreveu todo o libreto da ópera, incluiu muitos elementos e referências de outras tradições. Podemos incluir aqui:
-Filosofia de Schopenhauer
-Tradição budista
-Lendas Celtas
-Cristianismo
-Referências aos Contos de fadas como A Bela Adormecida, O Gato de Botas, O Garoto que não sabia o que era o medo.
Nessa ópera temos também o Ragnarök, mas com uma concepção inovadora de Wagner. O enredo da ópera também inspirou Nietzsche. Sabemos da relação de amor e ódio entre Wagner e Nietzsche, mas a influência de Wagner no filósofo foi tão profunda que não é exagero dizer que Nietzsche sem Wagner nada seria.
Nessa saga será visto muitos personagens familiares a nós, como Wotan (Odin), Donner (Thor), Loge (Loki) e as Valquírias. Além disso há muitos heróis famosos como Siegfried, Brunhilde e Sigmund, além de seres mitológicos como os maldosos anões chamados Nibelingos, gigantes, dragões e ninfas.
A história gira em torno do ouro roubado do Rio Reno pelo Nibelungo Alberich. Ele descobre a magia desse ouro que feito em anel dá poderes infindáveis a seu dono, desde que aquele que o fabrique abandone o amor. O Nibelungo então abandona o amor por toda a vida, cria o anel através do ódio e a ganância e assim obtém o poder. Mas Wotan rouba este anel por meio de trapaças e o Nibelungo amaldiçoa esse anel e aquele que o possuir deve morrer. O deus então deixa este anel ao gigantes que irão perpetuar a maldição. Mas Wotan teme o anel e busca tentar mudar o destino criando uma a partir de seu sangue raça nobre de heróis e as Valquírias.
Claro que há muito mais enredo nesse pequeno trecho que contém, como a construção de Walhalla pelos gigantes, trapaças e segredos da deusa primordial Erda. Mas o enredo mais importante se passa com a filha Valquíria do deus: a donzela guerreia Brunhilde. Ela é na verdade a própria vontade de Wotan e fará tudo o que o deus não pode fazer, mas para isso ele terá que sacrificar sua filha (a sua vontade verdadeira) e deixá-la abandonada para agir por si mesma e cumprir sua verdadeira vontade: o fim de tudo para que o anel não cause mais desgraças e o fim dos próprios deuses gananciosos. Para isso há de surgir um herói de vontade livre que não haja sob a vontade dos deuses e nem os tema. Este é Siegfried que terá uma bela e trágica história de amor por Brünhilde. Siegfried é o que podemos chamar de übermensch (o além do homem) e Nietzsche certamente se inspirou neste herói em sua filosofia.
O fim da ópera é o fim de tudo. Mas não sabemos exatamente o que ocorre depois do fim do mundo e dos deuses. Eu tenho 3 teorias: a pré-Nietzschiana, hindu/Nietzschiana e a budista/Schopenhaueriana.
-pré-Nietzschiana/hindu: como o ciclo começa com a origem do mundo a partir da água e termina com tudo retornando à água, então temos um eterno retorno e tudo irá se repetir eternamente como antes. Certamente Nietzsche via assim por um tempo.
-pré-Nietzschiana: depois do fim de tudo talvez só alguns humanos sobreviveram e isso gerou uma nova humanidade de super-homens (übermensche). Uma humanidade sem ódio, sem medo de deuses, pous eles mesmos são superiores aos deuses.
-budista/Schopenhaueriana: como Brünhilde representando a própria vontade e ela se extingue nas chamas que são apagadas pelas águas (Nirvana=apagar o fogo) e as águas se tornam imóveis e serenas no último acorde da música, então representaria a extinção do ser, o fim das manifestações. Como Wagner se inspirou muito em Schopenhauer acho esse pensamento mais provável.
Independente deste mistério, o desenhista da hq teve uma idéia interessante. Depois do incêndio e dilúvio universal que consome tudo só resta o amor, representado por uma bela cena amorosa e de reencontro entre Brünhilde e Siegfried, mas uma cena etérea, metafísica.
Quando Wagner escreveu toda a música, poesia, enredo, cenografia da ópera pensou na obra de arte total, ou seja, um tipo de arte que envolvesse todas: música, poesia, artes plásticas, teatro, etc. Vemos que Wagner conseguiu o seu objetivo, pois agora atingiu até o domínio das histórias em quadrinhos. O Anel do Nibelungo é realmente uma obra de Arte Total, Absoluta, seja na música, no teatro, na literatura e agora na HQ.