Luccubus 07/04/2024
Eu não consigo deixar esse livro como se fosse só algo que usei pra me entreter por um tempo e depois quero esquecer. Leonora tem uma potência gigantesca com as transformações recorrentes em suas imagens oníricas.
Eu termino o livro e quero mais. Não que queira mais dessa história, mas de estar junto desse mundo conceitual de Leonora. Já há admiro há muito tempo por conta de sua riquíssima obra visual, e também por conta de seu relato sofrido em "Lá embaixo" que li há dois anos. Como artista visual, escritora e que brinca também com o surrealismo sei que ela e Remedios Varo são umas das minhas maiores influências.
O surrealismo por si projetado como foi por Breton em seus manifestos é marcado por um sexismo rompante e visões um tanto deprimentes da humanidade por um pansexualismo devido a influência de um certo misógino dr. Freud. O próprio primeiro manifesto demarca o espaço da mulher na sociedade utópica almejada por Breton: ao lado de grandes visionários e artistas, talvez como musas, mas de qualquer forma como belos objetos apenas. É nojento pra dizer o mínimo.
Mas Leonora vai na contramão, ela deixa um calor em meu peito ao ler cada frase e um sorriso de cumplicidade com as piadas esotéricas e as críticas tão francas sobre religiosidades fingidas para se obter dinheiro e poder.
E ela não constrói uma narrativa feminista ao fantasiar sobre atributos femininos perfeitos ou idealizados, ela mostra que através de uma mulher travessa, como a Abadessa, existe uma fonte de transgressão revolucionária, e inspiração para outras mulheres que querem seguir seu próprio destino além da opressão. Tudo isso marcado por um terreno em que tudo se inverte, os próprios polos da Terra saem de eixo, e a fantasia toma vida e corre solta em momentos culminantes em que Marian, a nossa protagonista surda e velha, se encontra consigo mesma e decide canibalizar-se para se transformar em uma suma versão de si, não uma versão perfeita e espiritualizada como Maria, mas mais travessa e terrena, infernal e unida com suas irmãs.
O melhor desse livro é, como disse Olga Tokarczuk no posfácio, seu apelo kitsch. Ele não é uma narrativa sisuda, doentia em sua vontade de se estabelecer como um grande livro, mesmo tratando de grandes questões e sendo profundamente subversivo, a vontade subversiva se mostra até nesse tom leve, cômico, o que eu diria que é uma forma de rejeição total dos preceitos cristãos românticos neoplatônicos, de que só o mundo dos céus é importante, só o espírito deve ser nutrido, e pra isso é preciso flagelar o corpo. A lei maior do cristianismo seria o sofrimento, e Leonora não quer encorajar essa visão do mundo. Mesmo que os ossos idosos sofram com o frio, e o estômago doa de fome na sua greve, não é necessário se entender esse sofrimento como uma sublimação, e nem preciso se estender por ele. O mundo não precisa ser visto por lentes julgadoras dos confortos do corpo, nem é preciso premiar as maiores imolações, ainda mais se isso for vazio e não criar vida, mas só um senso de poder sobre os outros.
Então pra muitos esse livro pode ser bobo, ridículo, kitsch demais pra ser tolerado como boa literatura, mas o que resta a nós transgressores além de alentar os nossos com risos mordazes e horrorizar o senso comum com a nossa falta de decoro? Ser, por fim, levianamente fatal.