Flávia Menezes 07/01/2023
? A BESTA METÁLICA SE HUMANIZA, E O HUMANO SE BESTIALIZA.
?A Besta Humana?, esse romance psicológico do consagrado escritor francês Émile Zola, considerado como o criador e representante mais expressivo da escola literária naturalista, além de importante figura libertária na França, foi publicado em 1890 e faz parte de um projeto literário do autor intitulado ?Rougon-Macquart: História Natural e Social de uma Família sob o Segundo Império?, que corresponde a uma série de vinte livros publicados entre os anos de 1871 e 1893 sobre a sociedade da época, sendo ?A Besta Humana? o 17º livro desse projeto.
Com uma narrativa impessoal, e geralmente em terceira pessoa, Zola transborda em suas obas a essência do Naturalismo, trazendo em suas páginas o cotidiano de forma bastante fiel, sem nisso excluir o mais banal e vulgar, colocando em foco personagens da classe trabalhadora e menos favorecida em suas condições sociais precárias, expondo sem dó e nem piedade questões como a exploração do trabalho em centros urbanos, a pobreza, a prostituição, o adultério, o desenvolvimento de doenças psicológicas entre outros temas desconfortáveis que passaram a ser mostrados em sua face mais nua e crua.
Assim como cinco anos antes desta publicação, Robert Louis Stevenson lançava sua obra-prima ?O Médico e o Monstro?, que trouxe à tona com grande maestria a questão de que a maldade é algo intrínseco a nossa condição humana, ?A Besta Humana? também vai se aprofundar em nossa psiquê, mostrando como um ato ruim pode se transformar em uma trama em que, para viver, todos os envolvidos precisarão esconder seu lado mais obscuro para sustentar as aparências.
Recheada de muitas traições, ganância, ciúmes patológico, chantagens e manipulações, tudo nessa trama se encaminha para que seus personagens acabem por revelar a sua versão mais mesquinha e cruel, indo até às últimas consequências para conseguir o que se quer. E como ninguém é inocente, as histórias de cada um vão se unindo e se enredando de tal forma que, ao final, não haverá um único personagem que não terá suas mãos sujas de sangue.
O que mais me encanta em clássicos como esse, é como esses escritores tinham um domínio de uma escrita tão rica em detalhes, que nos faz mergulhar na história como se ela fosse real. E mesclada aos elementos do naturalismo e toda a pesquisa sobre a essência humana que foi feita por Zola, essa é uma obra ainda mais rica, que honestamente deveria fazer parte de uma leitura obrigatória.
E eu não digo isso por este ser um clássico, mas porque Zola tem uma precisão cirúrgica para remontar a realidade da forma mais fidedigna possível, nos fazendo olhar para dentro de nós mesmos, repensando nossas ações e desejos mais mundanos. Esse é um autor que nos tira do lugar dos ?alecrins dourados? de extrema bondade para nos forçar a reconhecer que existe dentro de cada um de nós essa chama do mal que precisa ser contida antes que seja tarde demais.
?A Besta Humana? é uma verdadeira aula de escrita criativa, e sua narrativa poética nos transporta para as paisagens francesas com tamanha facilidade, que é possível até ouvir os barulhos do trem viajando a uma velocidade que, em terra, faz com que a vida que acontece lá dentro não passe de um borrão para quem o vê passar. É uma verdadeira experiência sensorial, o que eu acho realmente fascinante.
Mas, além dessa escrita tão rica que parece chegar ao nível da perfeição, e de personagens tão realistas que chega a ser difícil imaginar que não passem de uma criação do autor, a temática psicológica trazida à tona é trabalhada com tamanho cuidado, que deixaria até o pai da psicanálise orgulhoso.
Um elemento forte presente em diversas relações desde o início da história, é o impulso agressivo ligado ao masculino, que se revela em agressões físicas, abusos sexuais e até mesmo em atos homicidas. Por mais chocante que isso possa ser, é preciso ir além do fator perturbador, para olhar mais de perto o que se esconde por trás.
Esse é realmente um verdadeiro estudo da alma humana, em seu momento mais animalesco, e antes dos julgamentos e condenações, precisamos compreender que aqui, Zola nos faz olhar para a questão do impulso agressivo pela ótica psicanalítica, traduzindo-o como uma oposição entre a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação, que são conceitos da psicanálise que estão ligados ao impulso sexual. Inicialmente Freud não reconhecia a agressão como derivada de um impulso próprio, mas da relação entre a sexualidade e o instinto de autoconservação.
A agressividade está relacionada a um movimento impulsivo, ou a um ato destrutivo, que ocorre como uma resposta ao aumento da excitação, que por fim exige sua descarga por uma falha no aparelho psíquico em lidar com/simbolizar esse tipo de experiência. Afinal, quando o princípio do prazer demanda excessivamente do objetivo de gratificação, o reconhecimento do outro fica restrito as manifestações e as ações agressivas que são dirigidas a ele.
É claro que essa é uma teoria bastante complexa, e nem é minha intenção me aventurar demais nesse caminho, porque aqui se trata de uma resenha, e não um artigo científico. Mas o que eu quero dizer trazendo nesse momento o olhar da psicanálise sobre a agressividade humana, é que nessa obra, Zola não tinha como intuito apenas chocar, com suas cenas em que maridos espancavam sem dó as suas mulheres, ou do irmão mais velho que se achava no direito de bater na irmã para impor a ela o respeito pelo seu lar e o zelo pelos bons costumes, mas sim em revelar que é parte da condição humana portar um lado mau, cruel e desprezível.
Apesar de não ir tão a fundo nos acontecimentos pregressos que deram vasão a esses impulsos (algo que William Faulkner faz com grande maestria), ainda assim somos convidados a olhar os comportamentos humanos mais abomináveis para compreendermos como funciona essa lei da ação e da reação, bem como a compreender aquilo que a retroalimenta.
E é por isso que nenhum personagem dessa história é dotado de inocência. Porque entre o amor e a posse existe uma linha imaginária bastante tênue, e se nessa equação combinarmos uma manipuladora com um possessivo, seu resultado, certamente, será bem catastrófico. Como aqui, realmente foi.
Zola, nessa leitura, nos faz um verdadeiro convite para olharmos para além do ato, para nos despirmos das nossas preconcepções e nos tornarmos observadores ativos do comportamento humano, investigando e analisando com uma minúcia cirúrgica quais são os impulsos que se escondem e motivam cada ato de perversidade e barbaridade, que por mais que tentemos negar, somos capazes de realizar.
Assim como em ?O Médico e o Monstro?, ?A Besta Humana? vem para nos lembrar de que não somos tão bons assim quanto gostaríamos de ser, e que existem instintos e impulsos em todos nós que precisam ser analisados e trabalhados para que não se revertam em atitudes e comportamentos que vão além do que nos é permitido. E que negar a maldade que mora em nós, apenas a torna ainda maior e mais forte.
Depois de dizer tudo isso, eu não vou mentir, mas muitas das cenas não são para quem tem estômago fraco, ou que se impressiona facilmente, pois volto a dizer aqui que essa não é uma leitura voltada à indignação, julgamento ou condenação pelo comportamento inaceitável da violência contra a mulher. Mas uma expressão do real, que se fosse olhado com muito mais cuidado, e trabalhado adequadamente nos settings terapêuticos, poderia ser uma saída rumo a termos relações mais saudáveis e sem finais tão trágicos como constantemente vemos em nossos noticiários.
A locomotiva, essa besta metálica com nome de mulher que estampa a belíssima capa dessa edição da Zahar, é antropomorfizada neste romance, e descrita com características femininas, sendo a metáfora perfeita de como se dão as relações entre homens e mulheres, onde a paixão e o amor também dão espaço à rebeldia, à manipulação e o desejo de posse. E toda vez que ela (a locomotiva) se apresenta, sua presença reforça ainda mais o caráter da selvageria presente em cada um dos personagens, revertendo-se nos atos mais brutais e inimagináveis.
E assim como a besta metálica vai sendo humanizada, a cada página, o ser humano vai se revelando ainda mais em sua condição mais primitiva, lembrando que em cada um de nós existe uma besta que se não for domada, será capaz de coisas que não teremos sequer coragem de um dia confessar.