Paulo 19/01/2021
Ressignificar clássicos pode ser uma tarefa mais complicada do que parece. Ainda mais quando se trata de William Shakespeare e suas peças de teatro. Vários filmes já se debruçaram nas temáticas abordadas em peças como Rei Lear, Macbeth, A Megera Domada. Mas, A Tempestade sempre foi um desafio para qualquer bom produtor por conta do seu escopo e dos simbolismos atrelados a ele. Fora que a linguagem shakespeariana é a do teatro, sendo que transformar isso em um estilo de prosa pode se revelar um desafio grande. Mas, Margare Atwood aceitou a ideia e nos presenteou com Semente de Bruxa, um dos seus últimos grandes trabalhos (antes de Os Testamentos) e mostrou o quanto pode ser versátil na forma de abordar o roteiro.
Felix é um diretor de teatro que gosta de correr riscos. O comum para ele não tem graça. Em suas peças para a companhia de teatro local ele propõe peças que beiram à insanidade e, vez por outra, a ira do público. Mas, em uma manobra política, seu parceiro de produção, Tony, o retira do festival de Makeshiweg. Traído e abandonado por seus companheiros e vivendo uma vida solitária, Felix decide se isolar em uma pequena cabana longe daquilo que tanto o encantava. Seus pensamentos se voltam para a esposa que se separou e para a sua filha que morreu precocemente e se transforma em uma espécie de assombração, mesclada com a peça que ele nunca foi capaz de fazer, A Tempestade. O espírito de Miranda, nome de sua filha e de uma das principais personagens da peça A Tempestade, o perseguem, ilustrando seus fracassos. Só que a oportunidade para realizar sua peça e se vingar dos traidores pode estar chegando. Felix é contratado para um programa social na cadeia onde prisioneiros de crimes médios são incentivados a participar de um projeto educacional para reduzir suas penas. Lá, Felix vai encontrar um novo rumo para sua vida.
As associações com a peça A Tempestade estão espalhados por todo o romance. Atwood foi sagaz ao usar a peça de diversas maneiras, sejam elas claras ou subentendidas. A narrativa é contada em terceira pessoa a partir do ponto de vista de Felix, que funciona numa boa como uma espécie de Próspero no romance. Outros personagens da peça podem ser relacionados às figuras de Sal, de Tony e até na de Lonnie. Anne-Marie, que encarna Miranda na encenação na cadeia, é uma boa Miranda a partir do momento em que ela demonstra inocência quando precisa e maturidade para aconselhar o seu Próspero a seguir em frente. A narrativa adota um sistema em quatro atos (ou três atos e um epílogo) de forma a seguir o modelo teatral. No primeiro, temos a apresentação e o problema, no segundo temos o desenvolvimento e a preparação, no terceiro temos o clímax e no quarto a resolução de tudo. É uma maneira genial de introduzir a linguagem do teatro em um romance em prosa.
Nosso protagonista é um personagem que possui uma série de questões que precisam ser resolvidas. É como obstáculos que precisam ser superados caso ele queira avançar. Enquanto ele não for capaz de fazer as pazes com o seu eu interno e deixar o espírito de Miranda partir, Felix não vai ser capaz de seguir em frente. Não estamos aqui diante de um narrador confiável: Felix é dramático, quase teatral na forma como enxerga o mundo. Ele acaba encontrando no programa social uma maneira de não só ajudar outras pessoas, mas a manter sua criatividade em alta. É impressionante o quanto o personagem amadurece nesse tempo em que ele realiza peças teatrais na cadeia. Até mesmo a forma como ele se relaciona com as pessoas muda porque ele precisa pensar que essas pessoas não são iguais a artistas, que estão preparados para lidar com ambientes de stress. A própria cadeia é um ambiente de stress. Mesmo assim ele consegue criar um ambiente leve e engrandecedor.
Uma das qualidades do romance é perceber o quanto crescemos junto com o personagem. Acompanhamos as etapas da produção de uma peça ambiciosa. A preparação, os obstáculos, as mudanças de direção. Atwood nos mostra todos os bastidores da produção de uma peça de uma maneira tão gostosa que queremos permanecer no universo literário que ela criou até o final. Felix não é um produtor 100% correto o tempo todo, sendo surpreendido por aqueles que ele está ensinando. Ao final todos vão ter atravessado o seu Rubicão, tendo retirado alguma coisa desse aprendizado.
A vingança realizada por Felix vai se tornando mais e mais vazia à medida em que a produção teatral vai mostrando a ele aonde ele pode inserir os seus esforços. Pensar que ele criou aquilo como uma forma de lidar com seus inimigos. Só que sua tristeza e solidão se refletem no espírito de Miranda que o persegue e acaba fazendo parte da produção teatral. Nesse sentido, o personagem é muito humano e tenta lidar com a dor à sua maneira. Quando chega lá pela segunda metade da trama já sabemos aonde está o coração do protagonista.
Mas, onde está o elemento fantástico da narrativa? Bem tênue, na existência da assombração de Miranda, em Próspero que por vezes se funde com o próprio protagonista. Mas, não existe aqui nenhum feitiço sendo realizado, ou bolas de fogo disparadas. Atwood fez uma bela ficção especulativa onde traça a trajetória de um homem que precisa lidar com seus fantasmas e seguir em frente ao mesmo tempo em que traz luz e cores à vida de prisioneiros desesperançosos. Todos saem melhores ao final da narrativa, exceto aqueles que cometeram maldades.
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