de Paula 23/12/2021
Uma escritora digna de Nobel
Tive a oportunidade de ler Antes do Baile Verde a alguns contos selecionados na coletânea Pomba enamorada ou uma história de amor e outros contos escolhidos no ano de 2020 e confesso que até ler Lygia Fagundes Telles contista, não gostava muito do gênero, foi ela quem me abriu os olhos para este formato e a primeira autora com quem me deleitei neste sentido. Conheço os contos do Machado, por exemplo, que são tão longos a ponto de serem divididos em capítulos, onde alguns são publicados em livros únicos, por isso, a minha referência não era muito boa, porque para mim, o Machado era um novelista, não contista – mas, isso é algo que eu penso. O que me surpreendeu nos contos de Lygia é que ela é uma daquelas autoras de estilo único, como sua contemporânea, Clarice. A paulistana tem sua forma de contar histórias curtas que são marcantes e ao mesmo tempo únicas, deixando o julgamento de caráter dos personagens ou o encerramento da história a cargo do leitor. Ela conta sobre situações cotidianas, mas também se aventura pelo terror e fábula, sem medo de mostrar a verdadeira face das pessoas. Este livro traz em um único volume os famosos Antes do Baile Verde, Seminário dos Ratos, A estrutura da Bolha de Sabão, A noite escura e mais eu, Invenção e Memória, Um coração ardente e Contos esparsos. Mesmo que não contenha todos os contos da autora, são os que ela revisou e deixou ser republicado. Ela é uma mulher admirável, no auge dos seus 98 anos, a sua escrita não perde o vigor, a audácia e a acidez, além da sua lucidez de decidir como quer que o público leia suas histórias, isto é magnífico. Foi indicada ao prêmio Nobel de Literatura em 2016, não ganhou, mas no meu coração e no de todos que tiveram contato com um dos livros dela, Lygia sempre será a campeã. Deixo registrado alguns pontos observados nos livros e meus contos prediletos.
Antes do baile verde
Este livro eu confesso que não reli na edição única, por isso, trago os comentários feitos na resenha específica do livro apartado, que eu ainda concordo.
Os contos da Lygia não são parecidos com nada que você leu até hoje, porque eles são peculiares, de estilo único. O que eu mais gostei era de ir sem expectativas e ser maravilhada com tantas histórias realistas, de mágoa, vingança, traição, arrependimento, relações completamente destruídas e outras no marasmo, com episódios sem um desfecho explícito, cabendo ao leitor preencher as entrelinhas, ou simplesmente ir para o próximo conto, cabe a cada um o que fazer com as informações do conto.
As pessoas retratadas são humanas, cheias de pecados, imperfeições, sem nenhum ato heroico, mas facilmente identificáveis. Todo conto começa com uma sensação de calmaria, como se a vida estivesse da maneira que os personagens sempre almejaram, ou simplesmente estivessem acomodados com o que estava acontecendo, se deparam com as emoções borbulhantes por baixo da pele, trazendo à tona pensamentos e sentimentos guardados de uma maneira tão específica que acaba levando ao final do conto de maneira brilhante. Não há marasmo na leitura desta obra, simplesmente não é possível parar de ler na metade do conto, você precisa saber mais, mesmo que não vá ter uma resposta definitiva desenhada pela autora. Isso é magnífico, escrevendo não parece ser possível, mas é.
Esta edição conta com 18 contos, gostaria de citar os meus favoritos: Verde lagarto amarelo, Apenas um saxofone, O jardim selvagem, Natal na barca, Venha ver o pôr do sol, Eu era mudo e só, O Menino, são simplesmente sensacionais. O conto do natal tem ligação completa com a religião, mostrando os pontos do cristianismo desde o nascimento até a ressurreição, completamente diferente de tudo o que já vi. O conto Venha ver o pôr do sol é de terror, o que o torna uma experiência única, principalmente porque não se espera isso e ele foi estrategicamente colocado após o conto A Ceia, cujas narrativas se parecem a princípio. Todos os contos são ótimos, mas estes mereciam destaque.
Seminário dos ratos
Claramente Lygia foi amadurecendo na escrita e nos temas com o passar do tempo, é impossível não reparar que a qualidade do segundo livro é superior ao primeiro. Mesmo tendo gostado muito dos próximos, eu adorei Seminário dos ratos, acho que tem uma qualidade incrível, trata de temas importantes para o sistema político e social, além de contos marcantes.
O primeiro conto que me marcou muito foi A Sauna, como o narrador é cruel e maldoso, fazendo de tudo para chegar onde quer, sem remorso, apenas lembra do inconveniente que foi ter uma mulher simples que o amou e deu tudo por ele, para que ele se tornasse quem ele queria e foi descartada como uma sujeira que cola no solado do sapato e você consegue soltar esfregando-o no chão. Foi muito cruel e pesado, visceral e realista.
Senhor Diretor fala sobre a hipocrisia, principalmente das ditas mulheres belas, recatadas e do lar, que vivem de pudores e religiosidade para cima de todo mundo, criticando a sexualidade e todas as formas de representação feminina na sociedade, mas, por dentro gostariam de ser a atriz do filme com cena de sexo. É um fluxo de pensamento sobre uma mulher que vê revistas em banca de jornal e decide denunciá-las ao diretor da revista para que ele resolva a situação decadente, mesmo que isso seja pelo desejo obscuro de controlar as formas das pessoas se relacionarem intimamente, como se isso fosse a fonte de prazer dessas pessoas. Um ótimo conto.
Menções honrosas aos contos: As formigas (que loucura! Outro terror delicioso da autora), Tigrela e WM (lemos e ficamos no suspense para entender as minucias, um sobre quem é a tal Tigrela e o outro se os crimes cometidos são por conta de um transtorno dissociativo de personalidade, por fantasma ou de fato o que seja), Mão no ombro, A consulta e, claro, Seminário dos ratos.
O conto que dá nome ao livro é espetacular! Trata-se de uma fábula sobre os acontecimentos da ditadura militar, onde os golpistas são os ratos, que eliminaram os gatos e agora se refugiaram no interior (centro do país – Planalto Central – Brasília), onde ocorre uma mobilização para impedi-los de chegarem mais longe, mas eles acabam com tudo. Tem toques muito semelhantes ao Revolução dos Bichos, além de ter muitas camadas de interpretação. Lembrando que esse livro foi escrito e publicado na ditadura, passando pelos sensores da época. Com toda a certeza, se eu não tinha sido conquistada pela autora até aqui, este é sem dúvidas o melhor conto dela e sobre a ditadura militar, que foi uma realidade de 1964 a 1985, deixando um rastro de maldade e sangue na história do nosso país.
A estrutura da bolha de sabão
Neste os contos passam a ser mais profundos, complexos e até mesmo compridos. Dá para notar a maturidade da escrita da autora e provavelmente da pessoa Lygia Fagundes Telles, que após escrever Seminário dos ratos, estava pronta para o que viesse. Mesmo se tratando na maioria das vezes da burguesia ou a decadente classe média paulistana, Lygia introduz assuntos importantes em seus contos, o que auxiliam a entender melhor o contexto histórico da obra e ainda mais a crítica por traz do comportamento humano.
Já começa com A medalha, onde há um confronto de gerações, onde a filha quer viver sua vida e a mãe a critica, mas, a menina vai se casar no dia seguinte e estava com outro homem durante a noite toda, então, é bem difícil tomar um posicionamento, porque a noiva só faz isso porque o noivo é negro e segundo ela, não vai encontrar melhor partido. Normalmente os personagens da Lygia são repletos de lixo tóxico emanando de suas bocas, como esgoto, e neste conto não é diferente.
O espartilho é bem forte e fala sobre a decadência das famílias tradicionais paulistanas, sobre o apoio ao nazismo, o preconceito velado, as mentiras usadas para proteger os amados – cujas vidas eram podres, o racismo declarado, o controle sobre a vida da neta e a rebeldia do sangue que clamava por justiça pela sua ascendência. É muito específico, pesado, cheio de abuso psicológico e um dos maiores contos da Lygia, beira o tamanho de uma novela. Acredito que seja um dos melhores contos deste livro.
A confissão de Leontina é o meu favorito desta antologia. Conta sobre uma mulher simples, que vive da prostituição para se sustentar, após perder toda a família, exceto pelo primo mau caráter, e se vê metida em um caso de assassinato, a qual, ela é culpada. O conto é o relato desta mulher, simples e iletrada, que conta como chegou a este ponto e o que a vida lhe entregou mesmo em meio ao suor e as lágrimas derramadas desde a tenra infância. Me lembrou um pouco Torto Arado, a vida cruel do trabalhador do campo, assim como a história de Macabéa, quando foge da sua terra natal e vem tentar a vida no Rio de Janeiro. Muito crua e realista demais.
Menções aos contos Estrutura da Bolha de Sabão (sim, eu sei que não faz sentido!), e a Fuga. É um livro bom, mas os antecessores são muito melhores.
A noite escura e mais eu
Lygia estava mais introspectiva nestes contos, aparenta uma incursão mais pelo pensamento e caráter dos personagens do que as situações externas, como Seminário dos ratos e Estrutura da Bolha de Sabão. Além disso, ela tem coragem de trazer assuntos que eram verdadeiros tabus na época da publicação.
Meus favoritos nesta seleção são: Dolly (história de assassinato e liberdade feminina, assim como seu preço), O segredo, Papoulas em feltro negro e Anão de Jardim. Sobre Uma Branca sombra pálida, é sobre uma jovem lésbica ou bissexual, não fica muito explícito na história, que acaba se suicidando depois da mãe fazer uma grande pressão psicológica sobre ela, que agora é obrigada a dividir espaço no túmulo da filha com a amante dela, onde colocam rosas vermelhas (a namorada) e rosas brancas (a mãe). É bem triste e reflexivo, além de dar raiva da narradora por tanta falta de respeito com a própria filha.
Invenção e memória
Este é um dos livros reunidos que menos me marcou, embora seja muito bom. Acho que são os temas, que ao completar a sua maturidade, a autora permanece numa mesma linha de produção, o que já não gera a mesma novidade e suspense para ler o conto. Vale estacar: Que se chama solidão (acho que foi o pai da menina que fez isso), Suicídio na granja, Dança com o anjo (história de fantasma?), O Cristo da Bahia (e a conexão com um conto de fada de Oscar Wilde), Dia de dizer não, O menino e o velho (jornal sensacionalista, venha conferir esta história!), Rua Sabará, 400 (adorei o conto sobre Dom Casmurro e fiquei feliz com a análise sobre Bento e sua reação com a morte do filho, que um dia fora amado e querido antes das intrigas – para mim, senhor Bento Santiago é um psicopata, afinal, não tem um pingo de empatia naquele narrador não confiável), História de passarinho e Potyra (o realismo mágico emana nesta história, que se mescla de leve ao terror).
Um coração ardente
Como o título, estes contos são mais emocionais e viscerais, mas vou comentar apenas o conto que me sensibilizou e me lembrou de uma leitura incrível feita este ano. O conto é Biruta, que fala sobre um órfão adotado por uma família rica para ser o seu serviçal, junto com os demais empregados da casa, que tem um cachorro filhote que está naquela fase de troca de dentição que morde tudo e apronta todas. Como o próprio ser humano não vale nada para a família rica, menos ainda vale o cachorro dele e o desfecho da história é de cortar o coração, como o capítulo da Baleia em Vidas Secas. Emocionante e ao mesmo tempo reflexivo: quanto valemos aos olhos dos mais ricos?
Contos esparsos
Esta coletânea abrange contos de diversos momentos da carreira da autora, sendo possível identificar a mudança da escrita entre um texto e outro, inclusive a semelhança aos momentos das demais antologias. Quero destacar: O tesouro (uma caça ao tesouro na praia que vai dar numa cena de assassinato de uma jovem prostituta), O muro (os desafios da velhice e o retorno à infância, na viagem mística pré-morte, como a feita por Brás Cubas em suas Memórias Póstumas) e Hô-Hô (o ódio que eu tenho deste conto só perde para A sauna – ódio pelo personagem, porque a escrita é formidável).
O livro conta com uma fortuna crítica muito boa, além de contar sobre a vida da autora. Vale muito a pena a leitura, a apreciação e o saboreio destes contos. Tenho certeza que vou revisitá-los e provavelmente tudo isso aqui será modificado, assim como o é até hoje para a mãe deles, Lygia Fagundes Telles.