z..... 18/09/2019
Edição Martin Claret - Coleção A Obra-Prima de Cada de Autor (2005)
A leitura foi um tanto difícil, pelo desenrolar filosófico, em história onde a terra, com seus contrastes naturais e sociológicos, instiga percepções diferenciadas sobre a interação com ela, que Graça Aranha apresentou nas visões de Lentz e Milkau.
Esta terra é um pedacinho do Brasil, no Espírito Santo, onde chegam os protagonistas citados, como imigrantes alemães, em busca de realizações, com descobertas e conclusões interessantes, no que as expectativas sugeriam uma Canaã...
Lentz foi descrito como caçador, transmitindo percepção de um conquistador. Sua visão de mundo, na interação com a terra, tem essa caracterização. As impressões que teve mostraram ambiente hostil, castigado pelo sol, e com povo que julgou em estado que classificou selvagem, "menos adaptado", o que justificaria um domínio "mais evoluído", como via a si e a seu povo alemão. Para ele essa terra deveria ser dominada por seus conterrâneos...
Milkau foi apresentado como agricultor, alguém que constrói, que produz frutos, o que seria possível apenas numa interação harmoniosa entre as partes. Para ele predominava a visão comunitária, capaz de contornar as adversidades em ação coletiva, igual em valores para todos. É praticamente um socialista com utopias.
O romance foi publicado nos primeiros anos de transição entre os séculos 19 e 20, por isso acredito que o autor disserte sobre a percepção retrógrada de sociedade que vinha se desenvolvendo, através de imperialismo, colonialismo e demais governos dominantes, representados em Lentz (que o romance cita também como retrógrado); e suas expectativas do que seria sociedade justa, expressas em governo igualitário, de disposição comunitária, socialista (obviamente ilustrado em Milkau que, registre-se, tem mais destaque na história).
Nessas reflexões, merece destaque também a personagem Maria, que entendi como ilustração às visões de Milkau e Lentz. Sua história de vida é impactada por arbitrariedades similares a tirania de governos dominantes (como projetava Lentz) e também pela solidariedade e justiça igualitária, conforme o que o outro alemão valorizava para a sociedade.
Vale ainda referências para a terra, a priori uma Canaã, que se revela com contrastes entre dádivas e histórias sinistras de adversidades. Pelo menos três são impactantes: a do corpo do velho disputado por urubus, cachorros e homens; a do tonel de vinho que esmaga um menino (em que Milkau, em seu pensamento de valorização humanitária, exprime reflexão que registro ao final da resenha); e o episódio dos porcos e o filho de Maria.
Não vou liberar spoilers, mas tive e ainda tenho que fazer uma higiene mental para me livrar da lembrança da terceira ilustração, ou transformá-la em algo que fortaleça boas coisas... Sério! Até agora um frio cabuloso invade o sangue só de imaginar... Que desgraça! Dá uma repulsa gigantesca.
Seja como for, essa é a terra que se revela, que requer uma relação ante suas adversidades e potencialidades, à lá Milkau ou Lentz... Acredito que sejam episódios para impactar, causar horror, revolta, incômodo, como deveriam também os episódios de injustiça social, que nem o acontecido com Maria, em que a arbitrariedade caiu medonhamente sobre ela.
O final é bastante poético, como um sonho, na busca de realizações ante ao pensamento de Milkau. Registre-se também que Lentz tem sua visão reformulada, reconhecendo-se retrógrado e desajustado à realidade.
Finalizando, num devaneio maluco, não imaginava Graça Aranha que em poucos anos as visões de Lentz e Milkau se projetariam de maneira torpe e extremada (doentia) nas percepções que impulsionariam o nazismo (com sua gana de domínio arrogante sobre os povos) e o comunismo (numa desfaçatez tirânica com pose de governo igualitário).
Pensamento de Milkau que merece registro, destaque e reflexão:
"– É dolorosa ainda mais do que as outras a morte de uma criança. É a dor diante do inacabado, do apenas ensaiado... do que nos ia completar... Não viver... E os que morrem sem ter vivido, os que foram apenas esboços da existência, deixam-nos uma piedade torturante.
Quando morre uma criança, nós também morremos um pouco nela, porque aí morre uma ilusão nossa."