Delirium Nerd 17/08/2019
O terror político de Emil Ferris: o perigo de ser mulher e imigrante
Falar sobre “Minha Coisa Favorita é Monstro“, lançado pelo selo Quadrinhos na Cia (Companhia das Letras), é falar sobre a arte em suas mais diversas formas e funções sociais, ainda mais se tratando das qualidades literária e gráfica que a autora norte-americana, Emil Ferris, dispôs em sua obra de estreia; sendo parcialmente biográfico, o premiado quadrinho foi elogiado por autores importantes como Alison Bechdel (“Fun Home“) e Art Spiegelman (“Maus”) e serve como mais um exemplo de que mulheres podem criar histórias magistrais na nona arte.
Ao longo da vida, Emil Ferris teve inúmeras profissões, mas era nos desenhos que ela se encontrava. Filha dos artistas Eleanor Spiess-Ferris e Mike Ferris, Emil sempre teve contato com as artes, por parte da mãe, que era pintora surrealista, e do pai, que criava quadrinhos pornográficos inspirados em personagens famosos; isto fez com que ela buscasse aprimorar seus próprios conhecimentos e viesse a trabalhar como freelancer.
A vida de Emil mudou drasticamente quando, em 2001, aos 40 anos, foi picada pelo mosquito culex e contraiu a Febre do Nilo Ocidental, doença que atingiu seu sistema nervoso central, causando encefalite, meningite e febres altas que acarretavam em constantes quadros de delírio. Além disto, Emil teve os membros inferiores paralisados e também a mão direita e, até hoje, mesmo após anos de fisioterapia, a saúde de Emil requer cuidados.
Foi no processo de recuperação que a autora começou a desenhar e roteirizar “Minha Coisa Favorita é Monstro“, quadrinho que levou seis anos para ser concluído e, após concluído, enfrentou muitas rejeições por parte de editoras. A finalização de seu trabalho foi uma forma de vencer as limitações impostas pela doença e, de várias formas, uma maneira da autora se reconectar com aquilo que sempre lhe fora precioso: a arte.
Assim como sua criadora, Karen, a protagonista de “Minha Coisa Favorita é Monstra” nasceu em Chicago e conhece muito sobre os lugares e as pessoas da cidade. Ao longo de seus 10 anos, a garota coleciona histórias criadas dentro de uma mente imaginativa, apaixonada por monstros como a própria Emil Ferris, que, desde pequena, apreciava filmes B como “Drácula” e “Frankenstein“. A paixão pelo sobrenatural e suas particularidades fazem com que Karen se enxergue como uma “lobismoça” e é esta identidade que a autora mantém por toda a obra para que conheçamos o mundo dela e das pessoas que nele vivem.
Karen mora com a mãe e o irmão mais velho, Dezê, em um prédio e um dia recebe a notícia de que a vizinha Anka, pela qual tinha tanto apreço, morrera com um tiro no peito e a cena apresentava elementos contraditórios e misteriosos: este é o pontapé para que Karen assuma o papel de detetive e passe a investigar quem – ou o quê – esteve envolvido na morte de sua amiga.
Ambientado em 1968, o quadrinho retrata uma Chicago marcada por um clima pesado, repleta de pessoas intolerantes e violentas, as quais Karen denomina de T.U.R.B.A, aqueles que querem a qualquer custo machucar e padronizar quem é diferente dos demais, como a própria protagonista. O interessante em “Minha Coisa Favorita é Monstro” é que, em momento algum, Karen tenta se enquadrar no padrão imposto pela sociedade, tanto que adota a persona de lobismoça com muito orgulho e não esconde isso de ninguém.
É incrível como Emil Ferris nos apresenta um roteiro original e nos brinda com a aparição de mulheres diferentes entre si, porém ligadas por uma força sem igual, ao iniciar por Karen, que mesmo tão nova precisa lidar com o bullying na escola por ter a aparência e gostos diferentes. Neste ponto, a autora também se conecta à sua personagem, por precisar utilizar suas peculiaridades ao seu favor na fase escolar para não se sentir sozinha; as duas também se conectam quanto à sexualidade, uma vez que tanto Karen quanto Emil são bissexuais.
Em determinada passagem, Karen visita um cemitério, encontra um túmulo e conversa com o fantasma de Kate Warne, a primeira detetive dos Estados Unidos. A representatividade e o sentimento de conexão entra as duas é imediato, uma vez que Kate também usava roupas masculinas para exercer seu trabalho. A mãe solo de Karen é outra personagem que, para além da superproteção que nutre pelos filhos, precisa enfrentar os obstáculos que a vida lhe impõe sem desanimar Karen e Dezê. É uma personagem leve, engraçada e dona de um amor e compreensão incondicionais.
Anka é uma das personagens mais instigantes da trama, pois além de boa parte da história girar em torno de sua morte, Karen também investiga seu passado e quais acontecimentos poderiam estar ligados ao trágico incidente. Nascida em Berlim, em 1920, ela cresceu em um bordel por conta da mãe, que tornou-se prostituta para oferecer melhores condições de vida à filha, devido à precária situação em que a população alemã se encontrava na época.
Junto à Sonja, a cozinheira do bordel, Anka encontrou uma válvula de escape para a condição de abusos psicológicos que tanto ela e a mãe sofriam; a mulher lhe contava inúmeras histórias e nota-se no desenvolver da personagem o quanto a mitologia e os contos faziam parte de sua personalidade e a ajudavam a escapar dos horrores da realidade em que vivera, passando pelo holocausto até sua chegada aos Estados Unidos, já adulta.
A arte está presente em cada quadro da obra de Emil Ferris: de citações de estreias de filmes da época no cinema local, como “Planeta dos Macacos” (1968, Franklin J. Schaffner), à exposições de arte no museu da cidade, Karen fala sobre as obras que admira e sobre o que a move como uma pequena artista. A vontade de ser desenhista profissional vem do irmão, Dezê, outra representatividade forte para a protagonista. Ele ensina à ela técnicas de desenho e também a leva para ver quadros famosos e, em uma cena comovente em que os dois visitam o Instituto de Arte, Karen literalmente mergulha nas obras, as analisa e de forma sinestésica, aproveita e absorve cada aspecto daquelas que mais lhe chamam a atenção.
A forma como Emil Ferris nos conta sobre seus conhecimentos e paixões pelos olhos da garotinha curiosa que Karen é, transforma cada página de “Minha Coisa Favorita é Monstro” em uma experiência extremamente catártica e as referências culturais são uma grata surpresa para quem gosta dos temas apresentados.
“Minha Coisa Favorita é Monstro” não é sobre luzes que piscam misteriosamente, uivos que congelam a espinha ou correntes sendo arrastadas no silêncio da madrugada; os terrores, aqui, são muito reais – doenças graves, amores não correspondidos, violências físicas, psicológicas e sexuais, racismo, a falta que se sente de um ente querido e a constante insistência em ter sua personalidade sufocada ganham status do horror que realmente representam na vida das pessoas e assustam muito mais, justamente por estarem ao alcance de muitos de nós.
Os fantasmas são os eventos e as pessoas do passado que, vez ou outra, voltam para assombrar quem resiste no presente. Os monstros são uma sociedade doente e decadente, sedenta pela carne de meninas inocentes, e os vampiros se arrastam a sugar, noite e dia, a vitalidade de quem, assim como Karen e Anka, quer existir sem amarras. O terror social e político de Emil Ferris assemelha-se em vários pontos ao de Mariana Enriquez, escritora argentina confirmada na Flip de 2019, pois as mazelas da sociedade são vistas por um viés grotesco e assustam por serem facilmente reconhecíveis e palpáveis. Karen, com tão pouca idade, nos mostra a fragilidade que há dentro de muitas pessoas e a maldade corrosiva que alcança tantas outras.
Antes de tudo, a obra é uma metaficção e surpreende por não se parecer com nada visto antes na história dos quadrinhos. Em primeiro lugar, ela foi estruturada em forma de diário e, assim como uma garota de 10 anos manteria seus mais secretos pensamentos dispostos nas páginas de um caderno, Emil escreve de diversos jeitos e em diversas direções e isto faz com que a obra se torne interativa. Em segundo lugar, as folhas são pautadas e o texto é disposto nas linhas e também dentro de balões.
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