Higor 11/05/2019
'Lendo Pulitzer': sobre a sensação de não pertencimento
Causando burburinho lá fora, atraindo a atenção dos críticos e figurando em diversos prêmios literários, seria apenas questão de tempo para ‘Lá não existe lá’, romance de estréia de Tommy Orange chegar ao Brasil, o que não demorou a acontecer de fato.
Anunciado como uma história original – o que é apenas em partes – o artigo do The New York Times, onde fala que este livro é tudo isso mesmo, é a mais pura verdade. Acompanhar a vida de 12 índios nativo-americanos aparentemente aleatórios, mas que, no final, se encontrarão em um lugar em comum, o Grande Powwow de Oakland, tradicional evento da cultura indígena, é no mínimo intrigante e empolgante.
A originalidade se dá logo no enredo. Índios que ouvem rap, que vivem na correria das grandes cidades, que tentam conciliar a vida urbana com as tradições indígenas, ou tentam guardar as raízes no fundo do baú, mas que persistem em aparecer... São índios amedrontados, seja com o passado difícil, ou com o que o presente e o futuro os reservam. Temos o jovem índio que vai assaltar o evento, ou o sobrinho que quer homenagear o tio, ou ainda a mulher que abandonou os filhos e terá a chance de reencontrá-los.
Perfis comuns, mas que se tornam especiais por ter, não de maneira forçada ou didática, mas sutil e agradável, a cultura indígena, que conhecemos de maneira abstrata e até mesmo preconceituosa, em terrenos demarcados, usando trajes típicos ou andando por aí pintados e caracterizados. Preconceito, aliás, que é o medo de cada um dos protagonistas.
Somos assombrados durante a leitura com um sentimento de desolação, de não pertencimento, de uma dívida histórica com os índios, desde as constantes guerras indígenas americanas do século 16, mencionadas pelos personagens, até os nossos próprios povos indígenas, a quem a terra foi tomada pelos portugueses, e dizimados durante o processo de colonização.
É esse o demônio pessoal comum de cada um dos protagonistas de Lá não existe lá’: o fato de ter uma nação, uma pátria, mas ao mesmo tempo não se sentir daquele lugar, e não pertencer a lugar algum; uma espécie de apátridas. Mas não somente isso. A sensação de pertencer a uma etnia que é desprezada, que está desaparecendo do globo, e ter que fazer com que isso acabe, ou não querer fazer nada. Não quer ser conhecido como Fulano de tal, indígena, e sim pelo seu nome, sem um rótulo.
Tais discursos sinceros e nada enfadonhos se dão graças à polifonia de protagonistas, que não é algo tão original como dizem, mas que me remeteu a livros e autores que me agradam muito, como ‘Lincoln no limbo’, de George Saunders, talvez o melhor livro do ano, e ‘A visita cruel do tempo’, de Jennifer Egan, seu elogiadíssimo magnum opus.
Desolador e angustiante, mesmo com doses acertadas de humor, ‘Lá não existe lá’ é um livro que deve ser lido com rapidez. O burburinho em torno dele pode ser até exagerado – sempre é – mas esta estreia é muito acima da média, e certamente trará reflexões sobre muitas questões que geralmente ignoramos.
Este livro faz parte do projeto 'Lendo Pulitzer'. Mais em:
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