Lucio 07/06/2021
Sócrates Precisava Morrer?
INTRODUÇÃO
Este é um pequenino diálogo retratando uma (ou duas) noite (s) antes da execução de Sócrates. Críton vai à cela de Sócrates tentar convencê-lo de fugir, dizendo ter conseguido um esquema para tal feito. Sócrates se recusa a ir, dizendo ser tal fuga um ato vil com efeitos nocivos. Seu amigo discorda e trava-se um curto mas precioso diálogo no qual Sócrates desafia seu amigo a convencê-lo do contrário, prometendo que aceitaria a fuga caso fosse convencido. Sabemos que Críton não o convenceu de antemão, mas com os argumentos que levanta no início ficamos ávidos para ver as refutações de Sócrates e a sua justificativa para aceitar seu destino fatal.
RESUMO
Críton, além de dizer que perderia um amigo insubstituível, dá uma série de razões para a fuga. (1) Primeiro, argumenta que havia conseguido os recursos - inclusive de outros amigos, como Cebes e Símias - e um modo de fazê-lo fugir. Por isso, Sócrates não deveria se preocupar com a exequibilidade do plano. Até mesmo sustento e segurança para seu exílio ele havia conseguido. (2) Argumenta também que seria extremamente vexatório para Sócrates e para seus amigos que ele não fosse libertado, pois todos sabem que tinham recursos para tal. Não o libertando, ficariam com a fama de avarentos por não querer dispender de alguns recursos para salvar a vida de tão célebre figura. (3) Críton também diz que Sócrates estaria colaborando com a injustiça de seus acusadores ao escolher cumprir a execução injusta que haviam sentenciado, quando poderia muito bem fugir e evitá-la. (4) Por fim, Críton afirma que Sócrates estaria escolhendo o que lhe era mais cômodo e falhando principalmente para com seus filhos, os quais deixaria sem sua presença em sua criação.
A (1) e (2) há uma resposta similar, a saber, uma espécie de discurso aristocrático, de depreciação do vulgo. Assim como para a saúde do corpo devemos ouvir os especialistas, não a opinião da multidão, para a saúde da alma devemos igualmente ouvir os especialistas nas virtudes, não o que o povo diz. Ouvir o povo, em ambos os casos, acarretará na corrupção do corpo e da alma. Portanto, Sócrates recomenda o desprezo à opinião das pessoas e garante que os bons transmitiriam a verdade sobre o que aconteceu. Além disso, condena o apreço pela reputação como um anseio justamente dos que não entendem das virtudes. E quanto à questão sobre a ameaça à vida que o povo poderia trazer, Sócrates argumenta que valia a pena viver bem, não apenas viver. E viver bem era viver de forma justa e honesta. Isso abre espaço para considerar o ponto (3).
Em (3) podemos dizer que se concentra o principal argumento de Sócrates. O filósofo observa que jamais é correto cometer injustiça, e retribuir mal com mal é cometer injustiça. Portanto, a grande questão era saber se tal fuga poderia ser justa. Caso não fosse, não seria correto fugir. O argumento de Sócrates é basicamente o de que o cidadão era um devedor da cidade e às suas leis, pois foram elas que ensejaram o arranjo familiar, o casamento de seus pais e a concepção de suas pessoas, sua criação e educação e a formação de sua própria família e filhos. Além disso, estar na cidade é se beneficiar da ordem das coisas que as suas leis estabelecem. As leis podem ser contestadas pelas vias legais, pela discussão e proposta de reformulação. Caso não sejam apreciadas, o indivíduo poderia se mudar, com seus bens, para outra cidade onde as leis mais lhe agradassem. Caso ficasse, estaria dando sua anuência às leis e se submetendo às suas sentenças. Sócrates mesmo havia vivido toda a sua vida em Atenas e não havia contestado suas leis nem desejado se mudar da cidade, embora apreciasse as leis de outras cidades gregas. Portanto, Sócrates viveu beneficiando-se dessas leis e dando sua anuência às suas sentenças - inclusive ao direito de ser chamado à guerra para arriscar sua vida. Caso resolvesse fugir, estaria depreciando as leis às quais até então abraçava. Ao fazê-lo, minorava sua força e prejudicava seu poder de ordenar a cidade. Portanto, estaria lesando aquilo de que tanto se beneficiava e acabaria prejudicando a outras pessoas também. Estaria agindo com injustiça e retribuindo mal com mal - i. e., a injustiça dos homens, não das leis, com uma transgressão às leis.
Além disso, Sócrates teve oportunidade de ser exilado com o consentimento da cidade. Agora, buscaria o mesmo recurso sem o consentimento da cidade? Obviamente estaria se contradizendo e praticando inquestionável injustiça.
Acrescenta-se a isso que a fuga faria dele um corruptor das leis. Não poderia ser bem recebido em lugar algum por cidadãos morigerados. E como corruptor da lei, confirmava a acusação de corruptor da juventude, pois quem corrompe as leis certamente corrompe os jovens. Além disso, seu discurso sobre as virtudes, que incluíam a justiça, perderia totalmente sua força por 'paralaxe cognitiva'. Sócrates só poderia viver em meio a transgressores da lei ou em cidades desordenadas e/ou com leis ruins, além de ter de abandonar seu próprio filosofar. Parte desse último problema foi trabalhado na 'Apologia de Sócrates', a propósito.
Ainda se pode acrescentar que se Sócrates morresse como transgressor das leis terrenas, como injusto, teria de enfrentar as leis irmãs das leis terrenas, i. e., as leis do Hades, que não o tratariam com pouca severidade por tal corrupção que teria causado.
Quanto a (4), Sócrates observa que acabaria privando seus filhos da educação ateniense caso os levasse para outro lugar. Se os deixasse, seriam cuidados por seus amigos como o seriam se ele perecesse. Mas seus próprios amigos correriam o risco de exílio e confisco dos bens após a fuga de Sócrates.
AVALIAÇÃO CRÍTICA
O diálogo é curto, mas bastante profundo. É preciso considerar com bastante cuidado suas implicações políticas. Para tais, portanto, temos, agora, mais questões do que esclarecimentos. Será que somos devedores do Estado assim a ponto de devermos obediência às suas leis ainda quando formos injustiçados? Sócrates defende aqui a uma forma de protestar contra uma sentença sem, com isso, desobedecê-la ou evitá-la. Para o filósofo, evadir-se da execução penal é minorar o poder das leis como um todo e, assim, enfraquecer a ordem pública. Pode-se, pelas vias estabelecidas, contestar as leis e buscar reformulá-las ou emendá-las, mas não fugir às suas sentenças estando sob sua jurisdição. A discordância que não move à atividade legislativa deve encontrar alternativa no retirar-se da jurisdição dessas leis, indo para outra cidade ou país onde leis que julgamos serem melhores vigorem.
É claro que há aqui uma questão contra o poder judiciário em contraste com o poder legislativo. Quando o judiciário erra, temos o direito de transgredir as leis que concernem ao poder legislativo? Contestamos o judiciário ao contestarmos o legislativo? Temos responsabilidade sobre a desordem causada ao fugirmos à uma execução penal criminosa? Com efeito, se tal fuga gerar apreciação pública, poderá gerar efeitos culturais perigosos sem os devidos esclarecimentos.
O texto também observa a questão do vínculo que temos para com a cidade e as leis em que estamos. De fato, os benefícios de uma determinada organização, determinada por um certo conjunto de leis e valores, são inevitavelmente desfrutados pelos cidadãos. Isso faz com que, de uma perspectiva contratualista, nos percebamos desde o início comprometido com os pactos realizados pelos nossos antepassados. Ainda que adotemos uma perspectiva crítica da sociedade em que crescemos, temos que considerar os benefícios que ela nos legou. As liberdades das quais desfrutamos, o nível de sossego para a nossa criação e as oportunidades que surgem nas configurações presentes são vantagens que recebemos e pelas quais devemos ser gratos. Portanto, este pequeno diálogo é um excelente complemento à discussão contratualista.
No diálogo temos, também, questões morais e existenciais sendo brevemente consideradas. Primeiramente, a questão da retribuição do mal com o mal. Esta é uma questão delicada, que pode ser cooptada pelo discurso pacifista. Mas é preciso observar que Sócrates não considerou o uso da força contra o transgressor como um meio ilegítimo. Pelo contrário, o afirma categoricamente. Portanto, esse tipo de prejuízo ao indivíduo não pode ser considerado como uma forma de retribuição da injustiça como uma justiça. É a própria manifestação da justiça. Contudo, parece haver uma condenação à vingança. É evidente que a vingança faz parte da justiça. Na melhor das hipóteses, Sócrates estava condenando a vingança pessoal, sem o devido processo legal.
Quanto à questão existencial, Sócrates considera o viver bem como o viver virtuoso, e que ele é preferível à longevidade. Com efeito, Sócrates reputa ser ridículo o apego à vida, principalmente da parte de um velho e a ponto de transgredir a lei, e o fazer com tantos prejuízos para os demais. Essa questão seria, doravante, explorada pelos epicuristas e estoicos e encontram aqui um excelente fundamento.
Por fim, o diálogo complementa a justificativa dada por Sócrates na 'Apologia'. Se Sócrates deixasse, portanto, de cumprir a lei, levaria todo o seu ensino sobre justiça e honra, sobre as virtudes em geral, ao descrédito, manchando seu legado. Se ele sucumbisse à sentença, se tornaria um mártir da causa pela qual viveu. Se ele viveu por ela, não morreria por ela?
REFERENCIAL TEÓRICO
Platão é geralmente o referencial teórico dos demais autores. Por isso, é difícil determinar seu referencial. Certamente, seu referencial até então era o próprio Sócrates, de modo que teríamos que investigar os referenciais de Sócrates. Mas isso levanta a questão sobre a autenticidade dos retratos que Platão faz do pai da filosofia, o que extrapolaria o espaço de uma resenha. De todo modo, não há referências aqui. Só podemos ter conjecturas como pano de fundo. Seja Sócrates, seja Platão, sabemos que detinham conhecimento dos filósofos da natureza que os precederam e dos escritos dos Poetas e dos escritos dos sofistas. Há uma menção aos oradores que defendem as leis. Talvez seja uma referência a Sólon e aos demais sábios antigos. Há também uma referência ao Hades e às suas leis, nos levando à provável referência ao Orfismo, Pitagorismo e à religião grega pública. Mais do que isso não podemos alcançar.
RECOMENDAÇÃO
Este é um diálogo pequeno e escrito em linguagem bastante acessível. Embora seja profundo em suas implicações, é muito fácil de ser compreendido. Basta que seja lido com o devido cuidado. E é uma excelente forma de ver Sócrates argumentando logicamente, embora não haja o emprego do seu método clássico de demandar definições precisas e de se buscar a coisa em si - há apenas uma tímida referência. Acreditamos que principalmente os interessados em política e ética têm a obrigação de ler e gastar tempo pensando a respeito de tudo isso. Acrescentamos que o diálogo pode muito bem ser complementado - ou ser complemento - pela leitura da 'Apologia de Sócrates'. E para um retrato desses últimos momentos ainda mais completo, a leitura do 'Fédon' seria excelente.