Jess 04/07/2023
Anna Karienina e a falsa Erudição (comentário específico)
Quem já leu Anna Karienina sabe que eu provavelmente teria um milhão de detalhes e reflexões que o livro traz, é verdade eu concordo. Mas se for levar em consideração que eu tenho o trabalho triplo de procrastinar pensar, escrever e postar a resenha, falar sobre um aspecto só já parece uma vitória bem suada.
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Acontece que teve um trecho, pouco depois da metade do livro, que alugou uma casa com 4 quartos na minha cabeça e tá aqui batucando até hoje. Desde o momento que eu passei o olho por essa cena eu senti vontade de falar sobre ela, então porque não dar uma força no que a escuto vez ou outra nos encontros em um clube do livro? Estamos decididos a fazer dessa cena o foco da resenha? Muito vem, e lá vamos nós.
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O título dessa resenha é bastante autoexplicativo, a questão é entender o contexto de onde surgiu essa passagem. Anna e Vronski estão na Itália, e encontram um amigo russo, Goleníchev. Ambos têm algumas conversas e uma delas gira em torno de outro russo residente da mesma cidade, o pintor Mikháilov. Goleníchev rapidamente se adianta em criticar a vida, a arte e a pessoa de Mikháilov, pura e simplesmente pelo motivo de não seguir o estilo de pintura clássica, as técnicas herdadas do renascimento, e inicia uma discussão em como as pessoas andam não estudando os clássicos, e por isso são pessoas inferiores intelectualmente.
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Prontinho, contexto dado, seguimos à reflexão. Engraçado que falamos de um livro do fim do século 19 (1877 sendo mais exata) e parece que a mentalidade não se alterou tanto assim. Não me leve a mal, estudar os clássicos é sim extremamente importante, eu não seria hipócrita ao ponto de falar mal de mim mesma que só leio livro antigo (kkkk) mas até que ponto o conhecimento mais antigo e """refinado""" deixa de ser um objeto de estudo e se torna uma posse ou uma afirmação de status social? E quem define que tipo de demonstração de arte é considerado erudito o suficiente ou não? Uma pessoa só é considerada instruída, ou educada, quando tem o conhecimento socialmente conveniente? É livre pensamento se você está condicionado a um roteiro estipulado por uma sociedade vigente? Ainda, quem vem de camadas mais baixas e deseja subir já é rechaçado por tentar estudar. O conhecimento pré-definido pela sociedade como importante então só é pra quem é 'selecionado'?
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Os livros são um retrato da época em que foram publicados, e se tornaram clássicos pelo alto consumo de suas histórias, e por terem feito esses retratos serem tão fiéis; e, assim como os mais recentes, existem em diferentes gêneros, estilos de escrita, cenários, e não necessariamente agradam a todo mundo. Existem muitos clássicos ruins, assim como existem muitos contemporâneos bons, a questão é não condicionar a qualidade de um livro ao ano que ele foi publicado.
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Em conclusão, não crucifiquemos os livros atuais sem saber do que falamos, nem seus leitores por gostarem de um ou outro romance (porém depende). E também não elitizemos os clássicos que podem agregar tanto na mente de quem lê. E também porque se começar com muita firula começa a ficar caro demais ter edição bonita e eu sofro com esse problema.
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E olha só, isso foi uma cena que durou, no máximo, 20 páginas. E já gerou em mim esse incômodo por querer falar sobre. Anna Kariênina é um livro de 800 páginas, então acredite quando eu disse que tinha 1 milhão de assuntos que podem se retratados, e que uma resenha só não dá conta de tudo isso. Esse texto ultrapassou a marca de 6000 caracteres e eu estou falando de uma única cena, sendo assim é bastante plausível concluir o quão majestosa é essa obra.
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Mikháilov é visto como inferior, apesar da sua pintura ser muito melhor construída do que a de Vrónski, isso porque era filho de um mordomo que ousou ultrapassar a própria bolha social e buscar estudo. Em um pensamento particular, Vrónski assume que Mikháilov tem inveja dele, porque ´"no seu entendimento, um homem de mundo inferior deve sentir inveja." Além disso, Anna e Goleníchev apreciam muito mais a pintura de Vrónski porque "estava muito mais parecido com pinturas famosas que o quadro de Mikháilov." Então devo assumir que 'livre-pensamento' se resume a copiar o que já existe?
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Trazendo a reflexão pro contemporâneo, posso dizer que é até um tanto irônico trazer essa discussão de um livro que se tornou clássico. Mas, parando pra pensar, Anna Kariênina era um ""contemporâneo"" na sua época, e se transformou num clássico que, numa cena específica, apresenta um personagem ferrenho em dizer que apenas os clássicos educam.
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Primeiramente, precisamos encerrar de uma vez essa visão de que só o que 'é antigo' é que educa. São importantes, sim, mas não devem ser as únicas linhas de pensamento, do mesmo jeito que não faz bem tomar o mesmo remédio vezes demais no mesmo dia só porque 'faz bem'. Ao mesmo tempo, também precisamos parar com essa de que literatura (ou música, ou arte, enfim) clássica só pode ser compreendida por quem é estudado, por quem é mais refinado, por quem está numa classe social maior. Não. Assim como desenhar, tocar violão, correr, a leitura também é um hábito que pode ser exercitado, ninguém nasce em 2023 com o vocabulário de 1870 baixado em .rar, pelo menos não que eu saiba.
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Dá pra reparar que essa cena me trouxe muitas perguntas que eu não necessariamente sabia responder, perguntas retóricas que abrem portas pra uma discussão bem longa. Mas se já deixa a pulguinha atrás da orelha de alguém eu acho bem suficiente.
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Comentando agora de forma mais abrangente, Anna Kariênina é um livro recomendável a quem quiser se aventurar na literatura russa. Começar com Tolstoi me pareceu uma escolha acertada, ainda mais com outros títulos dele na sequência. Conhecemos aqui a frivolidade e a futilidade da sociedade de Moscou, em contraponto à vida no interior, fatores muito evidentes na época do império. Temos escândalos sociais e a hipocrisia da sociedade, um sofrimento ardente e um sentimentalismo palpável. Quando eu digo que poderia ficar HORAS falando desse livro, não é mentira.