jiangslore 25/04/2024
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Quando mais experiência de leitura adquiro, mais percebo que o que mais valorizo em um livro é a forma que ele é pensado e executado. Não tem nada como observar uma obra literária e perceber que há intenção em todas as escolhas do autor e que, além disso, todas essas intenções foram cuidadosamente executadas - e foi exatamente essa sensação que tive ao ler "O Conto da Aia". Tudo nessa obra é tão intrincadamente elaborado que fica até difícil separar cada um dos aspectos principais do livro e apontar o que gostei neles (porque, sinceramente, não teve nada que não gostei, apesar de eu reconhecer que a obra possui aspectos relevantes que não vão agradar todos os leitores - até porque isso é impossível).
Mas, em primeiro lugar, acredito que o que torna "O Conto da Aia" um livro tão especial é a sua temática; porque é ela que permeia todas as outras escolhas feitas pela autora nos outros aspectos - principalmente construção de mundo, enredo e personagens. Acredito que, em razão de diversos eventos históricos relevantes, é relativamente comum que as pessoas se perguntem como indivíduos "normais" podem aceitar ideologias extremistas ou que submetam outros grupos de pessoas a opressões extremas. Mas não é tão comum assim refletir sobre por que as pessoas que são parte dos grupos oprimidos "aceitam" essas situações - e essa diferença é compreensível. A própria estrutura da opressão dificulta que o oprimido seja colocado no centro da narrativa (e nem mesmo essa nuance escapa da construção de "O Conto da Aia").
A construção de mundo é, em qualquer distopia, um elemento fundamental. E, em "O Conto da Aia", ela é simplesmente fantástica. Na obra, é possível encontrar diversas estruturas e especulações relacionadas ao gênero e à política que foram executadas com maestria e nuance impressionantes. Até mesmo o que é ignorado ou pouco mencionado pela protagonista mostra-se interessante, porque dá para perceber que essa ausência não decorre da inexistência, mas sim das limitações inerentes ao ponto de vista escolhido para contar a história.
O enredo, por outro lado, é um ponto que penso que pode desagradar alguns leitores. Acredito que distopias mais tradicionais possuem, via de regra, uma tendência a focar mais na construção de mundo do que em elaborar enredos com muita ação - e "O Conto da Aia" não é uma exceção a essa regra. Particularmente, adoro livros considerados "lentos" e que sejam bastante detalhados, então adorei essa escolha. Acredito que ela é coerente com tudo que é feito no livro e com as mensagens que ele busca passar, além de ter sido muito bem executada: o desenvolvimento do enredo, principalmente em suas partes menos agradáveis, possui uma relação íntima com o desenvolvimento da protagonista. E, por fim, embora a conclusão do enredo possa não ser catártica e "satisfatória" no sentido emocional do termo, ela é todas essas coisas no sentido de sua coerência.
Ainda com relação ao enredo, as notas históricas acrescentam ainda mais camadas às temáticas do livro - embora essas camadas não pareçam nada otimistas. A vida de uma pessoa, quando vira história, está sujeita a novas perspectivas e especulações que nem sempre colocam uma visão positiva - mas penso que, considerando o contexto das aias, é uma visão realista.
Os personagens de "O Conto da Aia" também são muito interessantes. Muitos deles têm a finalidade de mostrar as diferentes posições que as pessoas passaram a ocupar em Gilead, e isso é feito com uma maestria incrível - as pessoas não são colocadas em posições estanques de "heróis" e "vilões", apesar de ser evidente quem tem mais a ganhar e quem tem mais a perder na estrutura estabelecida naquela sociedade. Na minha opinião, esse é o melhor modo de encarar a questão; porque usar posições maniqueístas prejudica demais a forma de observar situações reais (nas quais ninguém precisa ser um vilão caricato para oprimir outras pessoas).
A personagem principal, por sua vez, é extremamente interessante por ser uma pessoa absolutamente normal. O desejo simples (e não muito heroico) dela pela sobrevivência é algo que coloca ainda mais realismo na história. Muitas pessoas gostam de pensar que teriam a coragem de enfrentar um sistema como o de Gilead, mas a verdade é que a maioria de nós não faria isso; e é por isso (entre várias outras coisas) que esses sistemas funcionam. Apesar disso, há vários aspectos na narrativa e no desenvolvimento da personagem que mostram que as escolhas dela não são levianas, mesmo quando não são boas; o que coloca a discussão muito além do julgamento que pode ser feito sobre ela.
Além de ser um livro cuidadoso e incrivelmente elaborado - e, provavelmente, por ter essas características - "O Conto da Aia" é incrivelmente realista. Só uma observação muito astuta da realidade seria capaz de criar uma obra assim. Por isso, o livro virou um dos meus favoritos e recomendo muito a leitura.