Leonardo.H.Lopes 10/07/2020Todos gostam, menos eu: O Conto da AiaLivro: O Conto da Aia (The Handmaid's Tale)
Autora: Margaret Atwood
Ano de publicação: 1985
País de origem: Canadá
É preciso deixar claro que tudo o que escreverei reflete meu gosto pessoal, baseado em minha bagagem de leitura e no que considero como sendo bom em um livro: (1)o que carrego do texto após a leitura, (2) os detalhes que fazem o texto literário ser mais do que invencionice, mas sendo, ao mesmo tempo, algo coerente, que te faça comprar a história como real e (3) que seja bonito, arte. Adianto que a escrita é até lírica aqui e ali, bela, mas o que esse livro deixou em mim e os detalhes, que eu explico aqui, fizeram com que a beleza de algumas partes do texto não fizesse a mínima diferença para minha avaliação. Definitivamente não foi um livro de que gostei, não sei se a pessoa que escreveu a orelha desse livro leu os mesmo livros que li, porque não consigo concordar que "O Conto da Aia retoma a tradição de clássicos da literatura distópica como 1984 e Admirável Mundo Novo". É um livro original, mas isso não quer, necessariamente, dizer que é bom. Não irei resumir a história, isso não é propriamente uma resenha, sendo mais uma forma de eu tentar organizar as ideias e compreender o porque de não ter gostado do livro.
Primeiramente, a história me parece um pouco absurda. A autora constrói um mundo distópico completamente diferente, um mundo que se transformou da noite para o dia naquele pesadelo. A personagem principal, a Aia do título, é uma mulher que já teve uma vida normal, marido e filha. Viveu no mundo que a gente conhecia e vive no mundo distópico completamente diferente, não muito tempo depois, pois ainda é uma mulher fértil. Compreendo que o cenário de um mundo em guerra muda tudo, mas não isoladamente e tão rápido e tão radical. Para o mundo mudar é preciso um processo histórico de décadas, é uma Revolução Industrial que leva a um Imperialismo, que traz disputas e alianças, que nos leva para uma Belle Époque, que finaliza numa crise, que se junta com o assassinato do herdeiro do Império Austro-húngaro, que vai dar na Guerra. Para se compreender dado tempo é necessário contar uma história de décadas e décadas. Nesse livro, tudo muda radicalmente do nada, sem nuances, sem pudor. As justificativas do final do livro não convencem, não me levaram a reverter minha não suspensão da incredulidade. Não comprei o contexto do livro.
Em segundo lugar, os personagens são rasos. A própria Offred entra na história e sai dela da mesma forma. Todos aceitam tudo de uma forma muito passiva, tanto os oprimidos, quanto os opressores. O Comandante e a Esposa estão claramente desconfortáveis com o que fazem, assim como as Aias, as Marthas, as Tias e todo o resto. E o que eles fazem para mudar? Resposta: NADA. Uma das ideias centrais do livro também é falha: o suposto valor da fertilidade, as “obscuras ligações entre política e sexo” (Angela Carter). As mulheres se tornaram inférteis e as poucas que são capazes de procriar são valorizadas? Não, são tratadas de modo que a maioria se matam. Isso mesmo. A humanidade vai ruir porque crianças não nascem em qualquer ventre, as pessoas vivas vão morrer um dia, e todos tratam as mulheres férteis do modo como é apresentado no livro. Isso vai contra, até mesmo, a um senso de sobrevivência. Além disso, a autora quis claramente criticar a Bíblia e a religiosidade, mas faz isso de forma não crível, superficial, de modo a tentar criar “uma história moral de significado profundo”(The Guardian), mas só conseguiu me afastar mais ainda do livro, pois tenta retroceder de 1980 para uma sociedade puritana do século XVII. Contudo os tempos mudam, revoluções, guerras, tecnologias fazem com que algumas coisas mudem de modo que não é mais possível retroceder.
Agora, existem também certos detalhes no próprio texto que me incomodaram por não serem coerentes. O quarto da aia não possui lustre para ela não se enforcar; não possui espelho e o vidro da janela é inquebrável; a janela não se abre toda para que ela não pule (grades não devem existir nesse novo mundo), não existem quinas também. Mas Offred anda pela casa livremente, na cozinha, sala, vai até ao mercado sozinha, de modo que, se ela quiser se matar, ela vai se matar, independente de o seu quarto ser “seguro” justamente para que isso não ocorra. Igualmente, existe uma parte em que o Comandante vai ler a Bíblia, que fica trancada não só para as pessoas não a ler, mas também porque o papel é uma tentação para o fogo. Mais uma vez, se Offred ou qualquer outro funcionário quiser incendiar a casa eles vão fazer. Existe acesso à cozinha, existe eletricidade.
A história também é mal contada, a narrativa em primeira pessoa é inadequada para esse tipo de livro que se passa num universo paralelo ou distópico. Isso porque a gente só sabe o que o narrador - a Offred - sabe e ela não sabe de nada. Não fica claro muitas coisas, detalhes do mundo novo, como tudo funciona, algo que poderia ser consertado se a narrativa fosse onisciente, mesmo centrada na Aia. O enredo discorre sem pontos altos, todo neutro, o livro não tem claramente um desenvolvimento ou um clímax. A personagem principal, que poderia ser uma heroína, é apática e anêmica.
Para finalizar, no final parece que a autora se cansou de escrever e decidiu finalizar o livro com um deus ex machina, uma solução que vem do nada e “resolve” as coisas. Alguns homens chegam na casa e levam a Aia embora, sem documento, sem mandado, sem nada. O Comandante e a Esposa veem sua preciosa Aia sendo levada sem mais nem menos e não fazem nada. Até o leitor, que sabe que aqueles homens pertencem a um grupo de resistência naquela sociedade, não compra o fato, pois nem mesmo essa ideia de repressão é bem desenvolvida. A história acaba em aberto e o que para muitos foi considerado a grande sacada da autora, para mim parece que nem a mesma sabia para onde estava indo com a história e decidiu encerrar antes que se complicasse mais ainda. O tão aguardado Conto da Aia se transformou num conto de pesadelo para mim.
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