Além das grades

Além das grades Samuel Lourenço FIlho




Resenhas - Além das grades


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Thales.Santos 14/04/2024

"Mesmo que a pena acabe, a prisão nunca termina."
A primeira vez que ouvi falar do Samuel foi em uma disciplina sobre Sistema Penitenciário. Na ocasião, convidaram o João Marcelo para falar sobre sua experiência quando atuou, enquanto estagiário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, na fiscalização de presídios aqui do RJ. Para quem tiver curiosidade, esses relatórios são públicos, basta pesquisar no Google que logo aparece o site.

Mas a palestra não foi apenas uma exposição de ideias, mas também de fotos. Para quem pesquisa prisão, e demais instituições de privação de liberdade, sabe a enorme dificuldade que é conseguir estar em um presídio, ainda mais tirar foto. Se você não for um apenado, um parente, agente penitenciário ou mesmo da administração, é visível o quanto eles dificultam a sua entrada, afinal, os muros não são apenas para prender as pessoas ali dentro, mas também para impedir que nós, enquanto sociedade, olhemos o que está acontecendo lá dentro. Tudo isso confere um caráter ainda mais especial para o teor dessas fotos, que foram mostradas para a gente, mas que também estão presentes nesses relatórios e que também são usadas direto pelo Samuel em suas crônicas que são postadas em seu Instagram. Nessa palestra, João (que acredito ser amigo do autor) nos pediu para seguirmos o Samuel, falando da qualidade de suas crônicas descritivas.

Passou-se um ano e um professor meu se desfez de grande parte de sua biblioteca e me deu. Além das Grades fazia parte ali daqueles livros, quando mandei foto para o meu professor, ele logo viu que esse ele tinha me dado enganado, afinal, até autógrafo e dedicatória havia do Samuel. Ele me diz "esse livro é especial, desculpa mas não posso te dar. Tem um outro aqui do Samuel na minha biblioteca que eu posso te dar, mas esse não!" Aproveitei que iria demorar para encontrar esse professor novamente e decidir ler o bendito livro. Parece coisa do destino... Palestra com o João, meu professor me dá o livro sem querer... Preciso conferir o que esse cara em para me dizer.

De repente, quando me vi, estava chorando. Na crônica Para a Minha Irmã, quando li o seu final "MInha irmã, desculpas pelo peso da bolsa, do crime, da vergonha e da cadeia. Obrigado por tudo" as minhas lágrimas desceram descontroladamente, ali elas se recusavam a obedecer um simples comando: chega! Se recusavam, apenas rolavam e rolavam, eventualmente molhando a página do livro.

Samuel foi preso por homicídio, matou uma mulher, um crime cruel e sem sentido. Mas isso você só descobre lá quase no meio do livro, na hora, por mais anti-punitivista e abolicionista que você seja, bate uma certa repulsa. Como simpatizar com um assassino? Mas, sinceramente, acredito que o Samuel não quer a nossa simpatia, ele quer que olhemos para outra questão, como ele muito bem coloca: ele foi preso e punido, mas quem foi lá tentar dar suporte a família da vítima? Nos preocupamos mais em acabar com outra vida do que necessariamente ir atrás de quem ficou para trás. Tá aí, Samuel joga na nossa cara a nossa própria hipocrisia, a nossa sede punitivista que pouco se importa de fato com a vítima ou mesmo com o autor do crime. Só queremos que esse conflito seja eliminado, jamais administrado. "Se há algo de humanitário relacionado às pessoas que cometem crimes, o ponto de partida tem que ser a liberdade e não a forma com o tal ficará preso."

Para além dessas questões subjetivas, as suas crônicas têm um valor basicamente etnográfico, em muito me lembrando um antropólogo descrevendo o seu campo. Em coisas ali pequenas, a gente compreende que há um universo de significados. Quando ele nos fala do cigarro, do café e demais itens, a gente tem a formação de mercados clandestinos dentro da prisão, criados e geridos seja a partir da negligência da administração penitenciária ou seja mesmo pela corrupção dela, tornando-se a atividade laborial e fonte de sustento de muitos presos. E claro, como em todo mercado clandestino, itens básicos são transformados em itens de luxo, com preços estratosféricos. Como ele mesmo diz: "Corrompe o guarda, gera lucro na cadeia, gera emprego e renda[...]"

Em outros momento, ele nos leva para uma descrição da estrutura física da prisão, com tanto detalhe, que é fácil se imaginar naquele ambiente úmido, mofado e claustrofóbico. Novamente aqui peço para que, quem tiver interesse, vá atrás dos relatórios que citei anteriormente da Defensoria para comprovar o horror que é. As necessidades fisiológicas sao feitas em um buraco no chão; normalmente não há chuveiros, apenas um cano que saí água; a água geralmente vem turva, mostrando o seu nível de contaminação; ambientes sujos que proliferam doenças de pele; e, apesar de não se tratar da estrutura física mas que é muito tratado no livro, quentinhas azedas.

Quando ele nos fala sobre a existência de uma diferenciação do tratamento de um preso miliciano, que não são chamados de bandidos ou vagabundos, em contraposição ao kra que pertence a alguma facção, podemos refletir que há variações na identidade criminosa. Em outras palavras: o que vai ordenar o seu "merecimento" ao esculhambamento ou um tratamento minimamente digno é justamente o quanto "bandido" você é, ou melhor, se você é enxergado assim. Um miliciano não é "bandido" como os outros...

Enfim, há uma gama de pontos que podem ser explorados e um importante livro para quem quer conhecer mais as realidades das unidades prisionais do RJ. Fica a recomendação.
LIBERDADE

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Rafael M. 21/12/2022

Visão
Essa leitura me fez retroceder naquilo que eu pensava estar avançando. Me fez entender que a teoria é muito importante, mas que é indispensável saber sobre as vivências, as experiências, pra que a conclusão seja o mais próximo possível da realidade.

As marcas que se deixam quando se cumpre uma pena privativa de liberdade, a cicatriz que se leva para todo o sempre, a estigmatização, o selo que se crava na pele depois de experienciar o sistema carcerário.

Não há uma relativização do crime, não há uma busca por se esquecer do que motivou o indivíduo a estar naquela situação, preso, mas que a penalidade existe por um motivo, que não se cumpre e, pior, se retira outra vida, além da vítima, ou outras, no plural, já que as famílias estão inseridas nesse contexto.

Essa leitura me deixou pensativo. Eu, que sempre, desde a entrada na faculdade, estive por dentro dessa realidade, mas como estudante, que cultivei um interesse pelo tema, que já me debrucei sobre várias obras, mas acabei me apegando as estruturas teóricas, as motivações psicológicas por detrás dos crimes, mas me esqueci de algo muito importante, a pessoa presa, a sua realidade, o seu dia a dia naquele ambiente, as consequências disso.

Enfim. Espetacular o que o Samuel escreve aqui. Leitura mais do que obrigatória para qualquer um que se interessar pelo tema.
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TatianaRJ 08/07/2020

Samuel é um egresso e isso dá a ele muita legitimidade para falar tudo aquilo que ele fala no livro. E ele fala muito bem. Samuel tem uma voz tão potente e é uma voz tão necessária, que escutá-lo é urgente num país como o nosso, que possui a terceira maior população carcerária do mundo.
São experiências no cárcere e trajetórias da vida que ele narra no livro.
É a vida dele desnudada em páginas. É uma vida que vai além das grades porque ele é grande. Samuel é gigante!
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