Mariana 19/07/2018Às putas, sim senhor"Mania de tomar as dores dos outros, de não suportar injustiças, natureza indomável, sediciosa. Como se mulher da vida tivesse direito de meter-se a besta, desobedecendo às autoridades constituídas, enfrentando a polícia, fazendo greve, um fim de mundo."
É a história de mais uma heroína de Jorge Amado: Tereza Batista, filha de Iansã, fama de arruaceira, que não suporta ver homem batendo em mulher, defendida por todos os orixás. Mais bem-defendida que ela, o pai-de-santo Nezinho nunca viu.
Tereza começa sua saga de sofrimento ainda menina verde, novinha, quando foi vendida pela tia para um coronel sanguinário e pedófilo; com ele conheceu ódio e medo. Seus percalços foram muitos e diversos: corajosa, liderou as putas de Muricapeba no combate à bexiga em Buquim, foi apaixonada pelo usineiro Emiliano Guedes, velho ricaço, poderoso e culto que a queria transformar em senhora. Tereza, de espírito inteligente e livre, é mais direita e justa que todas as senhoras de Estância juntas. "Que serventia tem uma senhora?", ela se pergunta. Por vontade própria, Tereza vira objeto de capricho de dono, que por doce e carinhoso, não menos dominador que o antigo coronel.
A discussão da dominação masculina é presente em todo o livro. Tereza, por belíssima e determinada, sempre foi alvo de desejo e de sentimento de posse dos diversos homens por quem passou na vida. Sofreu o pão que o diabo amassou, mas conheceu o amor.
Na capital Salvador, participou da 'Greve do Balaio Fechado' em que as putas suspenderam suas atividades em resistência ao governo. Conheceu em Aracaju o marujo Januário Gereba, "quem me quer bem me chama Janu", por quem se apaixonou perdidamente, pelo cheiro de mar, pela calma, pelo riso alegre.
"Puta não tem quem a defenda, ninguém por ela se levanta, os jornais não abrem colunas para descrever a miséria dos prostíbulos, assunto proibido. Puta só é notícia nas páginas de crimes, ladrona, arruaceira, drogada, mariposa do vício, presa e processada, acusada dos males do mundo, responsável pela perdição dos homens. A quem cabe a culpa de tudo de ruim quanto acontece universo afora? Pois às putas, sim senhor."
O livro tem o enfoque social clássico de Jorge Amado, com MUITOS aspectos culturais abordados: do sertão (onde Tereza nasceu e foi criada), do litoral (onde foi mulher-dama e ganhou a vida nos bordéis em Aracaju e Salvador) e do sofrimento do povo brasileiro no geral. Expõe a hipocrisia dos ricos, das elites, da burguesia. Não idealiza a pobreza, porém. Mostra a vida como ela é: simples e dura pra todos, mais fácil pra quem pode. Fala do escape masculino às prostitutas, com quem os homens tentam balancear a solidão da vida e os infortúnios familiares. O próprio Emiliano Guedes é um exemplo interessante: bem-sucedido, dono de banco e de usina de cana-de-açúcar, aparentemente poderoso e mandatório. Mantém Tereza como sua 'única alegria na vida', já não aguenta mais a família, por quem trabalhou tanto e quem só lhe rende tristezas. Morre de coração por conta das desgraças da vida nos braços da amante.
Uma cena que me deixou pasma com a genialidade do autor foi quando Castro Alves, poeta morto há cem anos e narrador em primeira pessoa, conclama as putas à revolução. É uma analogia brilhante à escravidão, em que a prostituição se encaixa em uma espécie de exploração contemporânea da mulher. Envolta no ambiente encantado do livro, de feitiços e orixás, a estátua de Castro Alves se desprende de seu posto na praça de Salvador e marcha com as prostitutas por seus direitos. Eu arrepio só de pensar.
Por fim, Jorge faz uma metáfora entre a personalidade incansável de Tereza (apesar de cansada de tantas guerras que viveu) e o povo brasileiro.
"Lhe digo, meu senhor, que Tereza Batista se parece com o povo e com mais ninguém. Com o povo brasileiro, tão sofrido, nunca derrotado. Quando o pensam morto, ele se levanta do caixão."
QUE LIVRO FANTÁSTICO.
!!!!!!!!!!!!!!!!