Toni 16/12/2019
O filho de Glória e Cartola, Aquiles, nasce com um calcanhar deformado numa Luanda em luta pela independência de Portugal. Os médicos advertem: antes dos 15 anos é preciso operar. A família se empenha: antes dos quinze, será preciso levá-lo a Lisboa para a cirurgia. As condições financeiras, no entanto, não favorecem a mudança de todos, e a família se divide: filha e mãe ficam em Luanda, pai e filho partem para Portugal.
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Esse seria, em linhas gerais, o pontapé narrativo do segundo livro da Djaimilia Almeida, autora de “Esse cabelo” (2015). Com “uma perna lá, outra cá”, Portugal e Angola, o romance surpreende a cada capítulo, complexo em sua representação da imigração, contundente e mágico na tentativa de falar sobre diferentes formas de pertencimentos (afetivos, familiares, territoriais, identitários). O calcanhar, a propósito, parte que permite ao corpo uma conexão direta com a terra sob os pés, guarda uma chave de leitura explícita: a condição anatômica de Aquiles lhe garante ligações continuamente falhas, incompletas, seja em relação ao lar materno, seja na vida encontrada a duras penas em um bairro pobre da capital portuguesa.
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A prosa de Djaimilia promete transformações até o último instante -- um final, inclusive, que abandona a narrativa muito mais que a encerra (mas não somos todos, enfim, narrativas em constante abandono?). Vocês já sentiram, ao entrar num livro, a sensação de pisar em território sagrado? Algo como um espaço de devoção e muita energia no qual as palavras parecem ter peso ou força mística? Esse sentimento me acompanhou por toda a leitura, alegretriste: há uma solenidade inexplicável em cada parágrafo desta história -- em cada carta, telefonema, visita, sonho dormido e sonho acordado.
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Apesar das injustiças politicamente inerentes à condição do imigrante, há inúmeros paraísos possíveis no coração desta história. Vencer o prêmio Oceanos deste ano foi apenas um deles, merecidíssimo.